Paz Armada e a Economia de Blocos: a nova geografia planetária

Autor: Paulo Rabello de Castro*

O ouro brilha no escuro

Elevado a sua máxima histórica, o preço do ouro ainda não parou de subir. Para muitos, seria reflexo de um horizonte planetário turvado pela Incerteza, palavra-chave que hoje resume o estado de espírito dos investidores mundo afora. A crescente demanda pelo metal teria origem no chamado “motivo de precaução”, quando indivíduos, empresas e tesouros de países resolvem elevar suas posições em ouro, como ativo de acatamento universal, de produção controlada e livre de interferências no campo político. Para os contemporâneos, no entanto, o ouro vem adquirindo mais uma utilidade, além de estocar valor e mitigar riscos, que empurra sua demanda por motivo de ser matéria-prima na fabricação dos gigantescos computadores quânticos, cuja revolução em velocidade e nova lógica de processamento poderá determinar qual país estará em vantagem numa eventual conflagração nuclear. Difícil de imaginar, mas esse é o ponto a que chegamos com a nova configuração da geografia política de um mundo cujas lideranças não se sentem estimuladas a praticar uma détente armamentista.

Estas notas versam, justamente, sobre a relação entre os ciclos políticos, o preço do ouro e o fim da era que entendemos como de Globalização do comércio mundial. O clima de guerra é o “novo normal” nas atuais relações multilaterais. Apesar dos apelos de líderes religiosos pela paz, uma “paz desarmada” – como assim invocou o novo papa Leão XIV em sua primeira fala aos fiéis católicos e ao mundo – a realidade política das nações é outra, a de iminência ou permanência de conflitos em praticamente todas as regiões geográficas do planeta. Não existe propriamente Paz. O ambiente que prevalece entre nações vizinhas e parceiros comerciais é de velada suspeita, baseada em amizade rala e interesses instáveis.

Pax Bellica vs. Pax Americana

Estabeleceu-se no mundo uma paz armada – uma Pax Bellica – para usar a expressão latina. A diplomacia mundial se afastou do período de relativa estabilidade, em que as democracias ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos da América, se impuseram ao polo totalitário sino-soviético. Esse breve período, de 1989 a 2009, de apenas três décadas, marca a plena vigência da conhecida Pax Americana. A queda do Muro de Berlim em 1989 assinala o fim do ativismo ostensivo da URSS no mundo e da confrontação ideológica dos soviéticos. Em tempo coincidente, a era de Deng XiaoPing se instala na China comunista. O líder Deng, um pragmático, fez um contorno na vertente ideológica do comunismo chinês ao deixar embarcar o “espírito animal” dos mercados dentro de seu próprio território. Mesmo assim, a paz garantida pelas tropas americanas no mundo não foi completa. O terrorismo islâmico floresceu no período, epitomizado no ataque às Torres Gêmeas no coração do império norte-americano. Os EUA retaliaram com relativo sucesso militar. Contudo, o flanco mais vulnerável da grande nação americana, que se abriu nesse período de paz relativa, não foi o do poder das armas, mas o da fragilidade do orçamento e das finanças, na esteira do estouro da Bolha de Wall Street em 2008. Em outras palavras, os EUA estão cada vez mais vulneráveis dentro de seu próprio território, por uma perigosa vulnerabilidade financeira. O alerta dado tardiamente pela agência de risco Moody’s ao rebaixar, semanas atrás, a avaliação do crédito da dívida federal americana, confiscando a nota AAA que sempre caracterizou os papéis do Tio Sam como “livres de risco”, chega com mais de uma década de demora em relação ao rebaixamento dos EUA feito, ainda em 2009, por uma agência brasileira de risco – a SR Rating – na época discretamente publicado numa coluna de canto da revista The Economist.

A emergência do poderio chinês

Nas rodas da diplomacia internacional, o debate da moda, agora, é sobre até onde nos levarão os escancarados esforços da China em romper a supremacia do dólar como moeda de referência nas transações comerciais e financeiras. A China de Xi JinPing contesta abertamente a liderança geopolítica mundial dos EUA e faz de tudo para ampliar sua influência política e presença comercial em todas as partes do mundo. Com inflação mundial controlada no período da Pax Americana, o poderio chinês foi se expandindo sem contestação, com a conivência da elite americana, pelo efeito de incorporação econômica dos tigres sul-asiáticos e das poderosas zonas industriais chinesas ao processo de integração produtiva mundial, a tal globalização econômica. A trajetória descendente dos juros básicos nos EUA na primeira década deste século e a formação do bloco do Euro permitiram uma valorização inusitada dos ativos e passivos do setor privado, em destaque nos mercados imobiliários de todas as regiões do globo, gerando acréscimos igualmente espetaculares de riqueza, computada pelo valor líquido de ativos imobilizados e de “papéis”, seja em ações de empresas, como também pelas novas emissões de renda fixa (dívidas privadas e públicas). As dívidas nacionais evoluíram em proporção do PIB dos países, embaladas pela falsa percepção de que os riscos de crédito haviam se tornado quase irrelevantes. Nesse ambiente de falaciosa segurança, o ouro não parecia um ativo interessante. A situação mudou com a crise financeira mundial de 2008, envolvendo a maciça intervenção dos bancos centrais para suprir liquidez aos mercados bancários “até o ponto que fosse necessário”. Expressões como “too big to fail” e “bailing out” se tornaram comuns. Ben Bernanke, o então comandante do Federal Reserve americano, capitaneou a grande onda de liquidez. Os demais bancos centrais seguiram a onda, por mais de uma década, num verdadeiro “milagre” produzido pela política de juro real zero. A conta amarga está batendo à porta agora.

Riqueza de Papel

A riqueza mundial inchou formidavelmente em termos de valor, desde então, e ainda se encontra em níveis secularmente muito elevados. A ordem geopolítica mundial propiciada pela Pax Americana permitiu que a percepção de insegurança político-militar tivesse recuado, como mostra a linha esquemática do Ciclo de Tensões Políticas [CTP] no quadro apresentado. Com a virtual eliminação da URSS como player ativo e sério num eventual conflito atômico – apesar do número espantoso de ogivas nucleares e de mísseis balísticos ainda detidos por vários países da antiga Cortina de Ferro – a tensão militar refluiu para a gestão de conflitos de alcance regional, seja nos Balcãs, ou em partes da África, e no Oriente Médio.

A linha CTP oscila conforme o ciclo político, entre fases de distensão e fases de tensão. O que vemos, na ponta dessa longa evolução, é o momento atual de impetuosa retomada das tensões ideológicas e de blocos, a ponto de se poder afirmar que o mundo se esqueceu da paz e se prepara para novo conflito de grandes proporções. Nesse ambiente, compreende-se com menos má vontade a conduta aparentemente sem nexo do presidente Donald Trump. Por ser versado em finanças, ele percebe que a dívida do governo federal levará os EUA, em poucos anos, ao impasse orçamentário entre fabricar mais armas e pagar mais juros. Trump luta contra um relógio invisível que marca as horas que faltam para ele ver explodir a confiança na estabilidade da ordem financeira baseada na hegemonia das finanças e do comércio com os EUA. Aliás, trata-se de uma realidade em processo de desaparecimento. Por isso, Trump tem pressa e atropela situações. A Pax Americana acabou. Trump é um líder que opera e transita entre dois mundos, o sonho do MAGA (“Make America Great Again”) e a realidade da fragmentação mundial, a Blocalização, a economia de blocos de poder e comércio.

E o ouro? Como ativo de elevada sensibilidade política, o metal preferido de reis e bancos centrais andou abandonado enquanto o quadrante do CTP era de baixa. Nem mesmo o torpe e surpreendente ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 conseguiu marcar um ponto de perturbação da maré descendente do chamado risco político. Até mesmo no Brasil, conseguimos escapar de turbulências maiores quando nosso país parecia descarrilar para a decadente banda da esquerda mundial em 2002, ao elegeu um presidente sindicalista. A realidade do dia-a-dia econômico foi se impondo e escapamos do buraco na primeira era Lula por exclusivo efeito da bonança mundial, em que os EUA se associavam ao enorme boom da economia chinesa. Tudo parecia se encaixar e o Brasil foi mais um herdeiro despretensioso daquele período de enorme afluência.

A verdadeira fragilidade dos EUA

O que fez entornar o ponche da festa? Foram vários fatores em conjunto, uns geopolíticos, como o extremismo islâmico, que resultou no ataque de 11 de setembro de 2001 em Nova York, e outros de natureza econômica, como subprodutos da própria “globalização” comercial, que propagou as cadeias mundiais de produção a ponto de gerar focos de dependência extrema do Ocidente aos parques de suprimento na Ásia, especialmente da China. Entre esses novos fatores encobertos de instabilidade, nenhum se compara à bola-de-neve da chamada “riqueza de papel” produzida pelas emissões de dívida pública em quase todo o planeta, pós-eventos do outubro de 2008 e da quebra do Lehman Brothers e de outras “inquebráveis” instituições. A elevação do valor dos ativos do FED americano em quase DEZ vezes é a lembrança mais exemplificativa dessa hecatombe de riqueza sem lastro, emitida por bancos centrais para cercar e mitigar a Grande Recessão, como ficou conhecida a queda do PIB mundial em 2009.

A década seguinte (2010 a 2020) se caracterizou por novas “enchentes” de liquidez e manipulação constante do juro zero, ou até negativo, nas principais praças financeiras. Parecia ser o “novo normal”, até durante o combate aos efeitos financeiros da Covid. Os países emitiram suas moedas sem parcimônia. Durante a primeira presidência trumpista, os EUA voltaram a inflar seus ativos. Os problemas da supremacia americana pareciam contornados. Mas era só uma nova fase do CTP, aquela em que o garantidor da paz mundial já não apresenta capacidade financeira para sustentar a paz nas suas fronteiras externas, nem produtividade suficiente para manter os investimentos em sua infraestrutura interna. A Pax Americana foi se convertendo, silenciosamente, numa Pax Bellica. Ainda uma forma de paz, é verdade, mas visivelmente conflituosa e desgastante para os EUA. Os conflitos vêm se acumulando: Iraque, Afeganistão e, recentemente, Ucrânia, Taiwan, Coreia do Norte e Israel-Gaza-Irã, Índia e Paquistão, só para citar as áreas mais quentes do globo. Realmente, trata-se de uma paz bélica, que ainda não envolve os principais atores diretamente, mas os têm todos presos pelos invisíveis cordéis dos seus interesses conflitantes. A OTAN, instituição discreta nos anos 1990, passou às manchetes diárias no noticiário mundial. No entorno de Taiwan, as armadas da China e dos EUA já mostram os dentes. No estreito de Ormuz, o Irã e seus parceiros guerrilheiros, ameaçam cortar a carótida do suprimento de petróleo. E nas entrevistas de TV, analistas polemizam sobre a rivalidade das moedas dos dois blocos mais aparentes, do dólar e do yuan chinês. Isso, se ambos não forem desbancados pelo avanço das criptomoedas.

Contestação e Blocalização

Não são episódios passageiros. Não são meras coincidências. Dentro de uma lógica cíclica de tensão- distensão-tensão de novo, estamos embarcados, entre hoje e os anos 2030, em novo quadrante de tensões crescentes. Isso ocorre, em parte, porque a Grande Recessão, ao fraturar a hegemonia financeira dos EUA, deixou aberto um campo em que grandes e médias potências passaram a ter um direito subjetivo de “ambicionar” sua própria projeção geopolítica no cenário mundial, que já não pertence apenas ao “patrão” em Washington. O rival ostensivo, mais do que Putin ou o aiatolá iraniano, é o autocrata Xi Jinping, que opera sem cessar na direção de preparar seu país para um grande confronto. Blocos se formam, uns com vocação parlamentarista, como a União Europeia, outros com marcado viés autoritário, como o Bloco Sinocêntrico, numa palavra, a proposta da “Grande China”. Esta avança celeremente com suas ofertas comerciais, como bizarros conquistadores em todas as geografias do planeta, do sul asiático à nova Rota da Seda (onde encontrará a forte oposição da Índia) e da África (onde baterá de cabeça com Europa) e até ao Oriente Médio (onde terá confronto direto com Israel e EUA). Na América Latina, a China tenta chegar pelo México e pela Argentina, ficando o Brasil para ser seduzido por meio de negociações em torno do bloco BRICS.

A “Blocalização” (A NOVA ORDEM “BBB”) é o arranjo geopolítico sucessor da Globalização. É um arranjo BBB pois o acrônimo, em inglês, representa as três categorias de nações conforme sua capacidade de (1) formar e liderar blocos de países – são os BLOCS; (2) evitar blocos liderados por terceiros e aspirar a liderar outros – estes são os BACHELORS; e (3) os países que integram blocos sob liderança de outros – são os BRIDES. Em português, estamos falando dos Blocos, dos Solteirões e das Noivas.

Há Blocos já formados. São o NAFTA (liderado pelos EUA, com Canadá e México), a Grande China (com arranjos comerciais e étnicos formados no Sudeste asiático e África) e a União Europeia. Há os Solteirões do baile (BACHELORS), que relutam em ser absorvidos passivamente pelos blocos já formados. Os Solteirões sonham secretamente com um bloco para chamar de seu. São eles a Rússia (que deteve até 1991, na marra, todas as nações satélites componentes da antiga URSS) e a Índia, nação de independência recente e com ambição muito mais sutil, embora potencialmente mais forte do que a Rússia. O Brasil seria também um candidato a solteirão, com bloco viável na sua região sul-americana (o Mercosul), caso não tivesse se convertido num caso patético de senilidade precoce na cena mundial, ao desperdiçar seu bônus demográfico e, neste momento, esbanjar a transição energética para uma economia verde e a transição digital, que sequer chegamos a deflagrar. Há também o Japão, solteirão inveterado. Finalmente, o mundo dos Blocalização é formado por países de menor porte econômico ou territorial, os NOIVOS ou NOIVAS, cuja propensão é a de orbitar na influência de algum Bloco.

O que vem pela frente

Dentro do contexto da Pax Bellica, que produz os contornos da nova ordem de Blocalização do comércio e das finanças mundiais, a linha CTP só tem uma direção inexorável: continuar subindo e exibindo tensões crescentes na medida da evolução dos conflitos latentes. Por trás de cada manifestação de tensão, haverá quase sempre um conflito de pano de fundo: de um lado, as democracias liberais e, de outro, as autocracias de partido único ou dominante, cujos pontos de atrito vão se apresentando, inclusive, nos embates da política interna de quase todos os países. Aqui no Brasil, isso estaria espelhado na desarmonia entre os Poderes.

É este o contexto do que nos aguarda no restante da presente década de 2020 e, com toda probabilidade, nos anos 2030, até que alguma dobra, hoje ainda invisível, dessa sucessão de conflitos, gere um armistício confiável entre os principais Blocos armados ou, então, o conflito aberto, seguido de um novo tipo de Pax. Até que se alcance essa nova mudança de quadrante do CTP, o ouro continuará sendo uma aposta dos bancos centrais e dos investidores. Junto com a fé no ouro, a visão predominante seguirá apostando no prosseguimento da Pax Bellica e na nova ordem da Blocalização.

Paulo Rabello de Castro – É Ph.D em Economia, fundador do Atlântico, instituto de ação cidadã e ex-presidente da Academia Internacional de Direito e Economia (AIDE). Foi presidente do IBGE e do BNDES. Autor de O MITO DO GOVERNO GRÁTIS e de outros títulos de sucesso.

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