Sergio Augusto Carvalho*
Essa mania que o mineiro, não só o de BH, tem de frequentar botequim vem de longe no tempo. Época Colonial, talvez. Quando não existia o lugar próprio (bar) para os encontros com amigos e uma conversa com cachaça e tira-gosto, havia sempre um salvador da pátria que convidava para seu ambiente doméstico. É a melhor maneira de fortalecer uma amizade.
As cozinhas das casas de antigamente eram o lugar ideal para um encontro desses: a chama da lenha acesa no fogão aquecendo os secos, e os molhados à disposição na prateleira ao lado. Quem pode não gostar de um ambiente assim?
Essa qualidade, que virou mania, enriquece o espírito do mineiro. Alguém pode até fechar um negócio sorvendo uma pinga com carne de sol num botequim, mas o que interessa mesmo é ir a um lugar desses onde você deixa de fora seu manto de autoridade e se iguala a todos os plebeus que estão lá dentro.
Quando a gente vai ficando velho, essa necessidade aumenta a cada ano que passa. A turma do Dente de Leite (meninada de hoje!) vai seguindo esse mesmo ritual – à sua maneira. Hoje, o gim desbancou a cachaça!
Querendo marcar um botequim pra ir com algum amigo hoje à noite, lembrei-me do que escrevi aqui, anos atrás, sobre esse prazer que mineiro tem de não viver sem ir a um bar com os amigos. Foi uma homenagem a dois grandes caras que já se foram e deixaram para nós os ensinamentos de mestres que eram. Vamos lá:
“Meu amigo, mestre e guru Targino Lima sempre gostou de fazer discursos ao final dos regabofes do qual participava – fosse num salão ou num bar. Para ele, fazer comida sem poder falar no final, não tem graça. É melhor até não cozinhar.
Essa prática não é comum hoje em dia, embora a gente sempre encontre uns “oradores” que cismam ter o dom da fala – e que até costumam fazer a comida voltar.
Uma das grandes máximas que o Targino gostava de usar sempre no início de suas locuções era essa: “A mesa é alcoviteira da amizade!”. Sei que a frase tem uma origem especial, mas a cabeça não está boa agora para me lembrar qual é.
Na Confraria do Mercado, quando, após a janta, ele se levantava sob surrados aplausos, seu sorriso alegre e confiante era imediatamente interrompido pela frase. “A mesa é a alcoviteira da amizade”. E tome mais aplausos, assobios e pancadas na mesa.
Grande verdade. Targino sabia o que falava.
Não consigo imaginar o que passa pela cabeça das pessoas que se recusam a compartilhar uma mesa de bar, restaurante, em casa, qualquer lugar, com outras pessoas. Amigos ou, por estar à mesa, futuros amigos. Bebendo ou não, comendo ou não.
Estou escrevendo esse texto no mesmo instante em que, a muitos quilômetros daqui de onde estou, desce para seu último reduto o que restou do meu amigo e ídolo Telê Santana Silva, uma das melhores pessoas que conheci
O que tem a ver a máxima do Targino com a morte do Telê?
Tudo.
Foi em algumas dezenas de bares e restaurantes de Caracas, na Venezuela, em 1975, que fiquei amigo de Telê. Eu cobria a Seleção Brasileira na Copa América pela revista Placar e ele era o principal assessor do técnico Oswaldo Brandão, quase no limite final da sua carreira. Eu fui assistir ao jogo da Argentina contra a Venezuela e Telê foi espionar os inimigos. Uma semana depois chegou a delegação brasileira que enfiou 5 no time da casa.
Não conseguimos voo para voltar ao Brasil e ficamos mais 10 dias por lá sem ter o que fazer. Nosso passatempo era ficar da janela no 8º andar do Hilton Tamanaco jogando aviõezinhos de jornal apostando qual ia mais longe. Quando a gente se cansava, era conversa e mais conversa. Telê tinha um maravilhoso estoque de piadas que não deixavam a gente (o fotógrafo Célio Apolinário e eu) ficar triste naquela situação.
Aí entra a mesa no meio da gente.
Quase todos os dias saímos juntos para almoçar e jantar. Munheca de samambaia convicto, Telê gostava de tomar pisco e comer macarrão. Às vezes um franguinho assado até que, certo dia, fomos perto do hotel comer uma paella em um restaurante espanhol.
Por sugestão dele, pedimos uma valenciana que vinha com frango, frutos do mar e lombo de porco. O visual estava ótimo. Mas o sabor…
Quando colocou um pedaço de frango na boca, Telê ficou roxo, azul, amarelo e cuspiu tudo no guardanapo. “Quê que foi, mestre?”. Ele tomou um gole de água e respondeu. “Essa mer..da está podre”. Nem foi preciso provar. Só de cheirar deu pra sentir.
Telê chamou o garçon, devolveu a paella e pediu a conta. Fomos a uma pizzaria – que é a salvação do mundo em qualquer canto do planeta.
Fomos para o hotel e Telê começou a contar as suas afinidades nulas na cozinha. Em Itabirito, onde passou 17 anos de sua vida até ir jogar no Fluminense em 1950, ele gostava de comer uma carne cozida que era a paixão do seu pai, seu Zico – goleiro que teve uma medíocre passagem pelo América.
À mesa do almoço de domingo, contava Telê que sua grande paixão era o frango – assado ou cozido, com quiabo – e macarrão da sua mãe.
No dia seguinte ao da paella estragada, ele nos chamou para ir a um restaurante italiano que fora recomendado pelo Marcelo Rezende – à época repórter de O Globo. Chamava-se “Il Padrino” e ficava numa pequena rua do centro de Caracas, num subsolo maravilhoso. Na entrada ganhamos uns “babadores” para pendurar no pescoço e não espirrar molho na camisa. Tenho esse babador até hoje.
Havia uma espécie de carro-de-boi no final da escada dando as boas vindas com todos os tipos de entradinhas e belisquetes possíveis. Telê tinha uma queda pela comida italiana mas sabia pouco dos seus caminhos até chegar à mesa. Nessa época eu era igual a ele. Sabia quase nada de gastronomia. Se eu pegasse uma galinha para transformá-la em algo comível também não saberia o que fazer com aquele defunto mole e branco.
Durante umas cinco horas, tomando um vinho da casa e provando os belisquetes do carro-de-boi, Tele contou tudo sobre a sua vida desde os tempos de Itabirito, a vida com sua tia em São João Del Rei e a ida para o Rio, aos 17 anos, levado pelo presidente do clube, o mineiro Marcos Carneiro de Mendonça. Seu relacionamento com Zezé Moreira foi muito mais além do que já foi publicado. Coisa de pai e filho.
Mais duas ou três idas aos botecos venezuelanos e nos tornamos amigos de confiança a ponto de, quando foi sondado para ser o técnico da seleção brasileira de 82, ele ter ligado para mim para confirmar o fato e, nas palavras dele, “evitar que esses focas aí fiquem falando bobagens, inventando coisas”. Ele temia que o jogassem contra Oswaldo Brandão e outros técnicos que tinham a preferência da imprensa carioca.
Alguns anos depois, fiz para a Placar uma matéria com o filho dele, Renê Santana do tipo “coisas que o papai conta lá em casa sobre a Seleção Brasileira e não fala na rua”. Sentei-me com o René por umas quatro horas no restaurante Dona Derna e consegui uma matéria maravilhosa. Telê não gostou muito não. Sentou o René no colo e me telefonou. Fui conversar com ele e, com o maior carinho, me disse que eu usei de malandragem pra fazer o filho dele se abrir e falar coisas que não devia. “Mas, Telê, ele não falou nada demais e foi você que me ensinou que para falar com o coração é preciso clarear o cérebro… foi o que eu fiz, da mesma maneira como nós nos abrimos anos atrás na Venezuela: numa mesa de botequim!”. Ele sorriu meio torto e tudo continuou como antes.
Seu caráter, honestidade e honradez não foram exemplos apenas para René, sua irmã e os netos. Para seus amigos e conhecidos ele foi incomparável.
Pena que o destino tenha afastado Telê das mesas que ele tanto gostava de frequentar, fora do seu maravilhoso mundo familiar e dos gramados do mundo. Ele se foi, mas deixou uma prova de que a máxima de Targino Lima e’ uma indiscutível verdade.
A mesa é a alcoviteira da amizade.
(Ps.: Este texto foi redigido no dia seguinte em que Telê Santana nos deixou!)