O paladar apurado da leitura pede passagem
Quem ainda não se debruçou sobre os ensinamentos do filósofo Shakespeare, quem não se encantou com os poemas de Shakespeare, quem não admirou sua dramaturgia, quem não devassou sua fase romântica infelizmente não gozou
de um universo humano que nos surpreende pelas fundas e interessantes razões e verdades que cercam as idéias daquele genial inglês que, com vontade de criar pelo prazer da criação, nos arrebata. Por isto, todos aqueles estão em
imenso prejuízo espiritual. Para definir Shakespeare, genial é a classificação mais próxima da exatidão. Possam muitos divergir, mas o valor superior da criação e da dialética deste incomparável autor são as suas incursões pela filosofia.
Cada peça de Shakespeare, se não exibe uma abordagem filosófica mais intensa, possui premissas metafísicas reveladoras de alta sensibilidade para as verdades do mundo. O que mais nos impressiona na obra do autor de Hamlet é que toda aquela inteligência não foi cultivada pelo ensino, vale dizer, Shakespeare era um autodidata. Platão já dizia que todo gênio tem um tanto de loucura divina.
Deve ser esta loucura que abasteceu a Inglaterra e o mundo das criações mais fantásticas, de Ricardo III a Henrique VIII, passando por Romeu e Julieta, Sonho de uma Noite de Verão, Hamlet, Otelo, Macbeth, A Tempestade e mais
trinta e seis trabalhos literários de imensa expressão artística. Imagine o leitor se na curta vida daquele autor (nascido a 1564 e morto a 1616), convivendo com a Londres e arredores que por vezes eram assoladas pela peste e outras endemias, e delas escapando, tivesse ele recebido informações curriculares ou tivesse aquela criatura extraordinária acesso ao que até então existia no mundo, estaríamos nós diante de um semideus das letras e das artes. Certamente não foram às suas mãos autores franceses ou ibéricos, que também fizeram da ficção momentos de profunda inspiração
tal como Dante, e outros franceses e alemães. É de tal grandeza a mente lógica de Shakespeare que, sem receio, pode-se afirmar que o inglês é um prefácio de Nietzche, tal o conteúdo de seus conceitos, ou poder-se-á dizer que o alemão do século XIX foi leitor atento e constante de Shakespeare. Toda a construção literária de Shakespeare, incluindo a poética, a trágica, a romântica e a cômica está assentada em fundamentos filosóficos tal que, se lhe fosse
dado exprimir-se, o inglês diria que não resistiria o mundo sem a arte filosófica.
Apesar dos atributos literários e artísticos deste gigante da criação dramática, seus textos não são imediatamente assimiláveis. Sua leitura não é fácil. Seus enredos lembram a leitura de um também aplaudido Guimarães Rosa (uma prosopopéia), ou de um Mário de Andrade, cujo Macunaíma, na linha de um primitivismo autóctone, requer ter à mão um
dicionário tupi-guarani para inteira compreensão do enredo e dos relatos.
Após sua morte, a memória gloriosa de Shakespeare sofreu alguns atentados que atribuíram a outras intelectualidades respeitáveis da era elizabethana a autoria de obras daquele irrequieto inglês que, só como ele, soube levar à cena retratos empolgantes da história e da vida de Inglaterra e da Europa. Os admiradores mundiais do dramaturgo,
a própria Inglaterra e expoentes especialistas em Shakespeare enfrentaram aqueles que tentaram reduzir a reputação e o êxito criativo do gênio combatendo versão de que parte da criação do escritor era, na verdade, inspiração de três outros ingleses, por sinal também vitoriosos em seus respectivos textos: Edward de Vere, Conde de Oxford, Sir Francis Bacon e Christopher Marlowe. Esta questão encontra-se, hoje, superada, vistas as provas irrefutáveis da verdadeira autoria da dramaturgia e de poemas objurgados pela crítica de seus patrícios. Muitos ainda não sabem que
Shakespeare sabia também costurar tramas com humorismo fino, tal é o enredo, por exemplo, de A Comédia dos Erros, passada em Siracusa, em que o narrador constrói uma trama adjacente em que são pivôs dois gêmeos idênticos com dois serviçais também idênticos, que geram constante confusão.
Sem Shakespeare, permanece sua grave indagação, que muito incomoda a humanidade, ainda não inteiramente respondida por ela: “ser ou não ser, esta é a questão”.
E como acontece nas comédias que escreveu, após a quase tragédia vem a alegria. É como nos transmitiu grande e esquecido poeta das Alterosas, que nos conforta em sua poesia: “Dentro da noite está contida a aurora”.
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