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Procissão do Encontro

Não era à toa que Zequinha Fortunato achava a Procissão

do Encontro uma das três coisas mais bonitas desse mundo.

As outras duas eram debate no tribunal do júri e festa em

casa de puta, como ele dizia, com todas as letras, açulando

a curiosidade de senhoras e donzelas.

Este ano, Dona Zilá Dias, professora aposentada e zeladora

da Matriz, esmerava como nunca. Andava de Herodes para

Pilatos, dando ordens, fiscalizando, tomando providências e,

principalmente, resmungando: “Esse povo de hoje em dia,

se a gente não ficar de cima, não dá conta de nada. É uma

pasmaceira só, parece que já nasceram cansados”.

Miudinha e esperta, Dona Zilá era um azougue, no seu

natural. Mas desta vez a falta de sofrimento, a afobação sem

conta, tinha um motivo especial: a presença, confirmada e

sacramentada, de Monsenhor Francisco Bastos, o maior

pregador sacro da Diocese, “um verdadeiro Montalverne”,

como ela apregoava, num alvoroço que mais confundia do

que explicava.

O pessoal da roça chegou mais cedo, foi enchendo a cidade.

De tardinha, vindo de todo lado, o povo foi se ajuntando no

Largo, nas esquinas e botecos. Noite fechada, Nossa Senhora

das Dores, no andor levado pelas mulheres, saiu das Igreja do

Rosário, pouco mais que uma capela, chamada de igrejinha.

Da Matriz, saiu Nosso Senhor, levado pelos homens.

A procissão seguia, contrita e vagarosa. O povo do lugar,

compungido e piedoso, rezava de olhos postos no chão.

Além de lenta, a procissão espichava o percurso pelos becos

e recantos da cidadezinha, maneira de render aquele raro

momento.

Em cada Passo, o cortejo se detinha. No silêncio da noite

fria, as Beús cantavam: O vos homines qui transitis per viam,

atendite et videte si est dolor sicut dolor meus.

Era uma cantoria lenta, tristíssima, cheia de sofrimento. Os

mais novos, mesmo sem entender as palavras, sentia um

peso por dentro, um repuxo no coração, vontade de chorar. Os

mais velhos, igualmente emocionados, recordavam tempos

antigos – gente analfabeta, piedosa e simples, cantando Kyrie

Eleison, Christe Eleison, o latinório todo na ponta da língua.

E a Verônica, numa lentidão de tempo congelado, ia

desenrolando o Sudário.

Retomado o movimento da procissão, alguém puxava um

hino, que todos acompanhavam, a banda tocando, quase

um cantochão marcado pelos passos cadenciados dos fiéis:

“Pecador contriiito/segue o teu Jesu-us/ que por teu amoor/

vai morrer na cru-uz”. Ou, então: “Perdão, meu Senhor,/

peerdoai, Senho-or”.

Finalmente, Nossa Senhora apontou no beco, do lado direito

do Largo. Nosso Senhor apareceu, veio da rua de baixo. No

centro da praça, o púlpito armado, vazio. Como de costume,

os homens paravam de um lado, as mulheres do outro. O

povo, intrigado, olhava o púlpito, sem entender. “Será que

aconteceu alguma coisa e o Monsenhor não veio?”.

De repente, para espanto geral, ele aparece lá dentro,

bradando:

– Jerusalém, Jerusalém, cidade do pecado! Ó tu, que,

pela multidão de tuas culpas, atraíste a cólera do Senhor!

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