*José Pastore
Conversar com Delfim Netto é sempre um privilégio. Do alto da sabedoria de quem estuda o dia todo e da experiência de quem praticou o que aprendeu, ele nos brindou com uma primorosa palestra em 27 de novembro passado, na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo.
Intrigado com os movimentos sociais que grassam em muitos países, Delfim associou o descontentamento dominante à forte redução da ascensão social que vem se generalizando. Alertou para a necessidade de novas abordagens nos estudos econômicos. Insistiu que o índice de Gini indica apenas a distância média entre as rendas das pessoas, e não seu bem-estar. Afinal, é isso que interessa, pois elas reclamam quando se sentem em pior situação do que a de seus pais e sem perspectivas de ascender na escala social.
Concordo com ele. Deve estar aí a raiz dos protestos da classe média que pipocam em tantos países. Lembrei-me dos primeiros estudos que fiz sobre o assunto, comparando os brasileiros que viviam na década de 1970 com seus pais e avós. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) daquele tempo registravam enorme ascensão social e início de formação de uma classe média razoável. De onde vinha isso?
Uma parte da ascensão social decorria da migração rural urbana. Pelo simples fato de um trabalhador chegar à cidade, seus filhos entravam na escola, sua renda se tornava mais estável e ele ficava em situação melhor do que a de seus pais.
Outras pessoas subiam ao entrar em empregos de status mais alto nas empresas do novo surto industrial (1950-60) nas multinacionais, nas estatais e no sistema financeiro que se expandia a passos largos. Todas subiam pelo simples fato de aproveitarem as oportunidades de trabalho que se abriam. E ali aprendiam e se tornavam profissionais.
Muito diferente é o quadro atual. Entre os filhos de classe média, poucos chegaram à posição de seus pais. A grande maioria está em situação pior e sem perspectiva de ultrapassá-los. Numa palavra, no Brasil de hoje, a ascensão social se tornou privilégio de poucos.
Isso gera muita frustração que, a depender da situação, se manifesta em revoltas e movimentos sociais. O estopim costuma ser um motivo material — o aumento do preço da passagem de ônibus, o encarecimento do combustível ou dos alimentos. Mas, por trás, está o desânimo de quem vê sua situação social estagnada e longe do que gostaria de ter. A decepção é potencializada pelas redes sociais, que fazem todos se sentirem mal ao mesmo tempo.
Entre os múltiplos fatores determinantes da redução da ascensão social tem destaque, no meu entender, o impacto das novas tecnologias no mercado de trabalho. Graças a elas, a maioria das profissões vem se transformando a uma velocidade que vai além da capacidade de ajustamento das pessoas e das escolas. Ao mesmo tempo que surgem novas oportunidades rentáveis para poucos, multiplicam-se os casos profissionais de classe média que são forçados a descer na escala social, porque seu trabalho passou a ser realizado sem seres humanos e, sim, por meios tecnológicos.
É o chefe do almoxarifado que é substituído pelo robô, a secretária que tem grande parte de suas tarefas executada pela inteligência artificial e do contador que viu os livros-caixa e diário substituídos pelo computador. Como essas pessoas têm pouco capital humano para entrar nas [poucas] profissões sofisticadas do mundo digital, só lhes resta descer na escala social e ali ficar para o resto da vida.
Penso que um estudo sobre mobilidade social nos dias atuais mostrará o reverso do que foi o Brasil dos anos 1960,1970 e 1980. É bem provável que esse quadro seja encontrado em vários países onde se cristaliza o descontentamento e proliferam as promessas populistas. Por mais absurdas que sejam, essas promessas abrem uma fresta de esperança para os que se dispõem a protestar e a agir em praça pública.
*José Pastore é professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e membro da Academia Paulista da Letras. É Presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio-SP.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da publicação.
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