Por Jayme Vita Roso

“O fardo deste tempo triste, somos obrigados a suportar…

Fale o que sentimos, mas não o que estamos obrigados a dizer”

(Shakespeare)[1]

1) Estamos assistindo e lamentando o crescente movimento popular em Santiago e em outras cidades chilenas, com depredações indiscriminadas de propriedades privadas. Tudo começou com o aumento da tarifa do metrô, por estudantes inconformados, os quais, agora, mudando de mote, pedem desde a renúncia de Piñera até a reforma da Constituição Política de la República.

É este o tema que nos interessa especular!

Por quê? A Carta Maior é a mesma que Pinochet outorgou e segue vigorando com algumas reformas constitucionais[2].

2) Quem se debruçar na Constituição Política da República do Chile, se afeito ao exame dos textos de Constituição de diversos países, desde logo vai ver que não emana do povo. É uma mistura de normas e atribuições sem uma ordem pré-estabelecida e orgânica. Basta dizer que, após o capítulo XI (Forças Armadas, da Ordem e Segurança Pública, em 4 artigos) segue o Conselho de Segurança Nacional (com 2 artigos) para tombar a instituição do Banco Central (Capítulo XIII).

O capítulo XV cuida da Reforma da Constituição, que é o mote da atual revolta e do quebra-quebra que está ocorrendo. Necessário, antes, alertar que não ficou incólume a Constituição de Pinochet, pois as reformas que foram efetuadas e as modificações ocorridas, não alteraram, no fundo, os mesmos preceitos, deveres e direitos, que a originaram (Reforma Constituinte nº 20.352, durante a Presidência do Sr. Ricardo Lagos Escobar: outro socialista, logo fez uma reforma que beneficiou somente o mercado, penalizando os mais carentes).

3) O capítulo XV, como sobredito, previa a promulgação da Carta Magna e a Reforma da Constituição (artigos 127/129). Os processos de reforma da Constituição só podem ser impulsionados por mensagem do Presidente da República ou por moção de qualquer dos membros do Congresso Nacional, com as limitações previstas no inciso primeiro do artigo 65.

Que necessitará este texto de reforma para ser adotado? A maneira que o legislador revolucionário a formulou mostra a intenção claramente inibitória, porque exige o voto de 3/5 dos senadores e deputados em exercício. Mas, do mesmo modo que exige este número avantajado, que não destoa do que ocorre com a nossa volumosa Constituição de 1988, se ela recair sobre as bases da institucionalidade, sobre direitos e deveres constitucionais, sobre o Ministério Público, da Ordem e Segurança Pública, ou finalmente sobre a própria Reforma da Constituição, então necessitará em cada uma das câmaras a aprovação das terceiras partes.

Por fim, ainda o mefistofélico artigo prevê, no último parágrafo, 127, o seguinte: “No que for previsto neste capítulo será aplicado à tramitação dos projetos de Reforma da Constituição as normas de formação da lei, devendo respeitar-se sempre o quórum, assinalados no inciso anterior”.

4) Pois então, pequenas reformas ocorreram em número de 22, entre 1989 e 2018. Ressalto que a presidenta Michelle Bachelet ensaiou uma reforma de fundo em abril de 2015, tendo concluído seu mandato sem obter resultado favorável. Basta lembrar que seu mandato terminou em 11 de março de 2018, tendo sido anteriormente presidenta do país entre 2006 a 2010. É estranho que, um ano após ter sido eleita no segundo mandato, anunciara um processo constitucional para redação, discussão e eventual aprovação de um projeto de nova Constituição que pretendia revogar a de 1980. Saiu diplomaticamente, dizendo que seu objetivo não fora alcançado, sem mais justificações.

5) Os movimentos populares iniciados por estudantes que pretendiam reduzir a tarifa do metrô, embora não pagassem as passagens, foi se ampliando em matéria de reivindicações de outros direitos (?), à semelhança do que vêm ocorrendo na França a respeito dos Coletes Amarelos. Há uma variedade muito grande de pedidos pleiteados nas manifestações na Praça Roma, em Santiago, porém, não há uniformidade nem organização das possíveis reivindicações, quiçá, hoje, até já superadas, porque o país viveu sonhos enquanto a economia parecia pender para o crescimento sustentável do PIB.

6) Vamos esclarecer e desenvolver algumas ideias sobre o que ocorreu e o que resultou das decisões políticas que tiveram reflexo direto na economia. Durante o governo de Bachelet, sobretudo no primeiro mandato, a China foi grande compradora de minérios (cobre). E, com uma visão estreita, de que se sustenta numa commodity, ou de duas, somadas às pressas, abriram-se as portas do país reduzindo-se, bruscamente, tudo o que se puder imaginar. Essa insensata atitude de Bachelet, tombou, logo em seguida, com sua derrota para Piñera, porque já era anunciado que a redução das atividades econômicas da China resultaria na diminuição drástica das importações. Enquanto isso, o mercado financeiro avançava de forma célere, criando um abismo muito grande entre as classes sociais, patentes, a olhos vistos, dentro da capital, Santiago e das diversas províncias, do norte ao sul.

7) Piñera, no primeiro mandato, acostumado a manejar empresas, fez um governo liberal reprovável. Volta Bachelet e, tentando remendar os graves erros cometidos no primeiro mandato e não superados por seu predecessor, nada mais fez do que instituir novos mecanismos para salvar a pátria, que imergia (em problemas), mas sustentada em uma excelente propaganda de governo. Acrescente-se que o povo chileno, sempre atento e de boa preparação intelectual, ao tomar ciência de alguns atos praticados pelo filho da Bachelet (e sua tentativa de acobertá-los), recusou-a. Voltou Piñera, com o mesmo tom de liberalismo, querendo impor medidas totalmente fora do contexto chileno, já em precário estado. Só que o PIB era destacado como grande vitória do seu governo. Este é o quadro que não está sendo pintado, mas que, diante das revoltas inconsequentes e incessantes, em ascensão, dessa vez assomam serem manipuladas por vândalos que têm destruído muito do pouco que eles possuem, chegando até a incendiar igrejas católicas.

8) Arrematando, algumas conclusões podem ser extraídas do fenômeno PIB em ascensão e o povo em declínio.

Há uma verdadeira simbiose de irresponsabilidades governamentais desde a queda de Pinochet, pois ninguém quis enfrentar os “benefícios” criados pela ditadura, para eles mesmos e amparados pela Constituição de 1980. A hipócrita tentativa de Bachelet, no curso de seu segundo mandato, foi uma maneira elegante para ela sair do governo como vitoriosa, tanto que, em seguida, foi conduzida a um cargo importante: deste setembro de 2018, é Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

A fim de sair do buraco que se aprofunda cada vez mais, medidas repressivas aos movimentos populares somente aprofundarão a crise política, com efeitos econômicos já sentidos e vividos, como a brutal desvalorização da moeda chilena. Daí em diante, é difícil avaliar o que poderá suceder, sabendo que Piñera não é confiável por seu passado, tendo apenas sido reeleito pela ausência total de liderança política honesta. Mas o povo chileno é bastante preparado e politizado para recusar qualquer provocação contra a genealogia da sua liberdade.

Para encerrar e esta é a estação própria, lembro Pablo Neruda: “Quero fazer contigo aquilo que a primavera faz com as cerejeiras”.

[1] Shakespeare, W. Rei Lear, Ato V, cena iii, 324-325.

[2] Disponível em: < Clique aqui. Acesso em 18 de novembro de 2019.

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