Minas e os fundamentos da autonomia cultural brasileira

Mauro Werkema*

Na Semana Santa deste 2024 ocorre o centenário da visita a Minas da famosa caravana de participantes da vanguarda modernista brasileira, liderada por Mario de Andrade, e que   assinala um marco histórico revelador do fenômeno cultural mineiro do século dezoito. Os visitantes, participantes da   Semana de Arte Moderna, que ocorre em São Paulo, em fevereiro de 1922, irão dizer que encontraram nas cidades histórias mineiras, especialmente Ouro Preto, os fundamentos estéticos   de uma cultura autenticamente brasileira, liberta dos cânones europeus, tema e aspiração básica do Movimento Modernista Brasileiro. 

 

Esta história começa em 10 de junho de 1919 quando   Mário de Andrade vem a Mariana visitar o poeta mineiro Alphonsus de Guimarãens, onde fora juiz municipal e já com fértil obra poética que lhe daria, muito anos mais tarde, o reconhecimento como um dos maiores poetas simbolistas brasileiros.  Mário relata que “em Mariana, a Católica, fui encontrá-lo na escuridão de sua sala de trabalho, sozinho e grande” e descreve seu encontro   como “uma hora de inesquecível sensação a que vivi com ele’. Nesta viagem, Mário de Andrade conhece Ouro Preto e dirá que encontrou, “perdida entre as montanhas de Minas” e preservada, uma “cidade histórica, artística e cívica”. E traz a Minas, em 1924, passando por São João del-Rei, onde assistiram a Semana Santa, Tiradentes, Congonhas e Ouro Preto, Oswald de Andrade, Godofredo da Silva Telles, René Thiollier, Tarsila do Amaral, Olívia Guedes Penteado e o poeta de origem suíça em visita ao Brasil, Blaise Cendrars. Mário, como também outros modernistas, voltaram a Minas e mantiveram diálogos com colegas mineiros, em diversos momentos.

 

Os visitantes dirão que encontraram no século XVIII mineiro, no campo das artes visuais, o “lastro cultural de uma identidade nacional”. E que identificaram nas   históricas mineiras   os elementos de uma “autêntica arte   brasileira”, com uma “autonomia cultural” nas Artes Plásticas, na arquitetura, no conjunto da “obra barroca mineira”, constituindo um excepcional surto de criatividade de artistas, mestres e artesãos em região marcada pelo isolamento geográfico. Manifestações de igual valor surgiram também em outras cidades, como Sabará, Diamantina, Serro, Tiradentes. E, refletindo a expressão modernista, Cataguazes, onde ocorre fenômeno cultural excepcional na história   mineira.

 

Mário publica na “Revista do Brasil” quatro crônicas sobre “arte religiosa do Brasil”, abordando a arte encontrada em Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e São João del-Rei. E diz que “na arquitetura religiosa de Minas a orientação barroca – que é amor à linha curva, aos elementos contorcidos e inesperados – passa da decoração para o próprio plano do edifício. Aí os elementos decorativos não residem só na decoração posterior, mas também no risco e projeção das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves”, em oposição às formas retilíneas, de origem jesuítica, encontradas nas primeiras matrizes mineiras sob a estética do Estilo Nacional Português.   Em 1928 escreve sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho e sua obra, dando-lhe dimensão cultural excepcional, iniciando a divulgação das suas obras e seu nome.  Ocorre então o despertar do interesse sobre Minas Gerais e o surto artístico e cultural do século dezoito que se revela também na pintura, na música e em uma ampla escola de entalhadores escultores, que o IPHAN irá revelar. 

 

Mário qualifica Aleijadinho, Antônio Francisco Lisboa, como “gênio brasileiro por excelência” e considera Minas Gerais como o espaço de formação de uma arte nacional onde se encontra o sentimento de identidade com a nacionalidade. E assinala que o “autenticamente brasileiro” marca o movimento modernista no conceito de autoridade e liberdade da arte religiosa, distanciada do litoral e da troca de experiência rotineira com a arte europeia. Igualmente desperta em Minas, nas vanguardas modernistas, uma maior atenção à cultura mineira setecentista. Mário diz que Aleijadinho consolida o conceito de “arte verdadeiramente nacional” e que permite a “identificação da inteligência nacional” (“O Modernismo em Minas Gerais”, Epaminondas Bittencourt, 2022; “Mário de Andrade em Minas Grais”, Natal, M.C, 2022. A Capela de São Francisco, em Ouro Preto, com risco e ornamentações de Aleijadinho, de 1763, revela o estilo de passagem do Barroco Colonial para o Rococó e mostra a genialidade do artista.

 

O mineiro Gustavo Capanema, integrante da geração modernista mineira, tornou-se, em 1934, ministro da Educação de Getúlio Vargas. O poeta Carlos Drummond de Andrade, destaque do modernismo mineiro, muda-se para o Rio e ocupa a chefia de Gabinete de Capanema. Em 1935 Mário de Andrade, a pedido de Capanema, apresenta o anteprojeto do Decreto Lei 25, elaborado em sua redação final por outro modernista mineiro, Rodrigo Melo Franco de Andrade.  Mário propõe a proteção do   patrimônio cultural brasileiro e orienta a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje IPHAN, que ocorre a 30 de novembro de 1937, por ato do presidente Getúlio Vargas.  Com visão modernista emancipadora, o patrimônio histórico e artístico nacional passa a ser definido como o “conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja preservação, seja de interesse público, seja por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”.  

 

E será esta consciência de identificação e proteção da cultura brasileira a marcante contribuição da Semana de Arte Moderna de 1922 e que se concretizará, de maneira efetiva e sistematizada, com a criação do IPHAN e que terá, em Minas, atuação intensa e reveladora da excepcionalidade cultural encontrada.  O pensamento modernista buscava justamente romper com o tradicionalismo cultural, com uma renovação estética, liberta dos cânones importados, encontrada em obras singulares e marcantes nas fases do Barroco Mineiro, na arquitetura, na arte escultórica e ornamental, entre outras manifestações.    

 

O SPHAN pesquisou em todo o Brasil, começando pelas cidades e igrejas históricas mineiras, as primeiras a serem tombadas, onde encontrou as “raízes de uma cultura brasileira original”, e com “uma originalidade nacional”, diferenciada dos estados do litoral, bem anteriores ao surto artístico mineiro e tipicamente portuguesas. Mário e seus seguidores dedicaram-se e, especialmente os técnicos do  então SPHAN, a  buscar explicações para este fenômeno, que ocorre nos primórdios da sociedade mineira setecentista, apesar do distanciamento geográfico,  como  herança de uma rápida e conflitiva  ocupação territorial provocada pela busca do ouro,  da rápida urbanização e um novo tipo de sociedade, a religião opressora, canônica e grave,   da  Contrarreforma e a atuação mais livre das ordens religiosas, as restrições   do regime colonial português, os anseios de autonomia  e de liberdade, manifestos por uma  constante rebeldia,  e a  consequente formação de  consciência crítica decorrente da formação de uma elite que conhece a Ilustração e o Iluminismo que se alastram na Europa nos anos finais do século XVIII. Forma-se nas cidades históricas de Minas “uma sociedade de pensamento”, que fala em independência e em república.  E surge uma nova classe social, os mulatos brasileiros, artesãos de reconhecido pendor artístico, herança de sua condição social e racial. 

 

Mário de Andrade dirá (“Arte Religiosa do Brasil em Minas Gerais”) que “foi neste meio oscilante de inconstâncias – a Minas Gerais setecentista – que se desenvolveu a mais característica arte religiosa do Brasil.  A Igreja pode aí, mais liberta das influências de Portugal, proteger um estilo mais uniforme, mais original que os que abrolhavam podados, áulicos, sem opinião, nos outros centros”. E conclui: “As igrejas construídas por portugueses mais aclimatados ou por autóctones algumas, provavelmente como o Aleijadinho, desconhecendo o Rio e a Bahia, tomaram um caráter bem mais determinado e, poderíamos dizer, muito mais nacional”.  Mário ressaltará a “opulência mineira no século XVIII” e a “carência paulista de bens históricos”. 

 

O SPHAN descobre e aponta os grandes artistas do período, além de Aleijadinho (1737/38 a 1814), como Francisco Xavier de Brito, José Coelho Noronha, Francisco de Faria Xavier, Francisco de Lima Cerqueira, escultores e entalhadores, o arquiteto e pedreiro Manoel Francisco Lisboa, o pintor Manoel da Costa Athayde e muitos outros. A Minas setecentista produzirá   outros expoentes na arte, na cultura popular e na erudita, no conhecimento, resultado da libertação intelectual, na arquitetura, escultura, literatura, na música e, já no final do século XVIII, no pensamento político iluminista, que inspira a revolução Francesa e a Inconfidência, ambas de   1789. Os inconfidentes já falavam em república e na independência, alcançada em 1822.

 

Será em Minas que a equipe técnica do SPHAN fundamentará critérios e soluções para intervenções preservacionistas, tombamento e restauração, nos elementos artísticos e estruturais das igrejas e construções mineiras coloniais. Realizará amplas pesquisas em acervos, fontes documentais, livros das associações religiosas, irmandades e confrarias, câmaras municipais. E irá expandir extraordinariamente o conhecimento do processo histórico e das condições e fatores propiciadores do surto de criatividade artística e cultural do século XVIIII mineiro.   

 

Lourival Gomes Machado (“Barroco Mineiro”, 1968), maior conhecedor do século dezoito mineiro, diz que “em Minas, no século XVIII, manifestou-se artisticamente, pela primeira vez, uma autêntica cultura brasileira”, com criatividade e expressões libertas dos estritos cânones importados da arte europeia. E que “nasceria em Minas a mais forte, mais farta e mais bela expressão de uma arte verdadeiramente brasileira”. 

 

Nas cidades históricas mineiras, especialmente na antiga Vila Rica,  revelam estudos abrangendo a América Latina, teria ocorrido “a terceira onda civilizatória das Américas, a primeira no México, com os astecas, na Península do Yucatan, que já em 1315 criaram  Tenochtitlan, capital do império asteca e  origem da capital mexicana  e, a segunda, no Peru, em Lima, pelos incas, que foi sede do vice-reinado espanhol na América, primeira universidade e primeira diocese,  complementadas pela cultura espanhola.  Ambas com títulos de Patrimônio Cultural da Humanidade da Unesco. O fenômeno mineiro possui similaridades com os outros: a povoação rápida e conflituosa pelo ouro, em ação pioneira na ocupação do interior do Brasil-Colônia, o insulamento geográfico em meio inóspito, os conflitos constantes pelo domínio territorial e resistência ao jugo português, o caráter ostentatório do barroco da Contrarreforma católica, conformando um caldeamento de condicionantes naturais e humanos. Estes condicionantes singulares produzirão, já no século XVIII, também obras de literatura, música, arquitetura, pintura, escultura e, até nossos dias, a diversidade e a riqueza das artes das boas práticas do bem viver nos diversos ramos da cultura popular e folclórica, como a gastronomia e o artesanato.  

 

Já em 1733, na inauguração da Matriz do Pilar, em Vila Rica, a procissão de trasladação do Santíssimo, chamada de “Triunfo Eucarístico”, revela uma sociedade irrequieta, mas com gosto pelo suntuoso, pela ostentação e pelas exterioridades triunfalistas, típicas do estilo barroco da Contrarreforma, com que o catolicismo contrarreformista, aliado do Absolutismo, procura vencer o protestantismo e a descrença que já nasce com o iluminismo, que alimenta os embates entre a fé e a razão. Nas festas das irmandades e festivas procissões, revela-se o barroquismo, que se torna “estilo de arte e de vida”, como nos fala Affonso Ávila, mestre da decifração do Barroco Mineiro.  Cabe a Minas lembrar e celebrar todos estes registros históricos.

 

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