Eu era economista do IPEA em 1983 quando recebi a incumbência de preparar um discurso para o então Ministro do Planejamento – Delfim Neto – que seria lido num encontro de empresários paulistas promovido pela FIESP. A única recomendação que recebi foi a de mostrar o crescimento e a transformação econômica do País nos últimos anos, incluindo os anos dourados do “milagre brasileiro” do final dos anos 60 e início dos anos 70 quando a taxa média de crescimento do PIB situava-se em torno de 12% ao ano. Os dados que levantei para esse trabalho mostravam que o Brasil saíra de uma incômoda 50ª posição em termos de tamanho do PIB, nos anos 50, para se tornar a 9ª economia do mundo. Nada mal.
Mas, os dados também mostravam uma outra realidade nada animadora: no período de altas taxas de crescimento econômico, os ricos tinham ficado mais ricos e os pobres mais pobres. – o que era confirmado pela piora no conhecido “Índice de Gini” (que mede o grau de concentração e desigualdade da renda entre os habitantes de um país). Este assunto já tinha sido objeto de muita polêmica na primeira metade dos anos 70 quando foram divulgados alguns dados econômicos pelo IBGE. Surgiram, então, de todos os lados, críticas ao modelo de crescimento econômico vigente, altamente concentrador de renda. Alguns economistas brasileiros da Escola de Chicago se manifestaram em apoio ao modelo argumentando que a apropriação da renda estava condicionada ao nível de educação (e não o contrário) e que nada poderia ser feito a curto prazo. Também em defesa do governo, veio o então ministro da Fazenda Delfim Neto que justificou o modelo com uma frase que ficou famosa: “-O bolo é pequeno e não tem como distribuí-lo agora. É preciso esperar o bolo crescer para, então, distribuí-lo!” Esta frase – que parecia fazer sentido – teve o efeito de amenizar muitas das críticas ao modelo econômico então em voga. O jeito, então, era esperar.
Os anos se passaram, o forno enfrentou alguns períodos de crise, mas o bolo continuou crescendo, embora de forma ciclotímica, e agora, 40 anos depois do reinado de Delfim Neto, a desigualdade de renda está pior do que naquela época. Não houve – na verdade, nunca houve – nenhuma medida de distribuição do bolo depois que ele cresceu. Ao contrário, os comensais que já haviam ocupado seu lugar ao redor da mesa só cresceram em número devido ao aumento de seus herdeiros e à inclusão meio que no “fórceps” de um ou outro “arrivista”. Atrás deles, pequenos e agachados, sem chances de alcançar o topo do tabuleiro, está uma horda de miseráveis que vivem das migalhas que sempre caem quando se come um bolo que às vezes se esfarinha.
E assim, chegamos a 2021 com dados preocupantes, para não dizer aterradores para uma sociedade que se pretende democrática, dinâmica e moderna. Os dados mais recentes mostram que o Brasil é o 7º país mais desigual do mundo. Pior que ele, só estão cinco países africanos sem maior expressão e mais a África do Sul – o pior de todos. Disparado, o Brasil é o país com os piores índices de concentração de renda na América do Sul. Pior ainda que a Colômbia que, segundo sempre se disse, é dominada desde os tempos de colônia espanhola por cerca de 200 grandes famílias. Até hoje parece ser assim. O Brasil, talvez por ser maior, é dominado por não mais de 300 grupos familiares há quase duas centenas de anos.
Apenas para se ter ideia da magnitude de nossas desigualdades socioeconômicas, tomando por base os dados de 2018, o 1% das pessoas mais ricas do País se apropriam de 28,3% da renda nacional – o 2º pior na classificação mundial, só perdendo para o Catar, ligeiramente pior que o Brasil (29%). Em compensação, os 40% de brasileiros mais pobres se apropriam de apenas 10,4% da renda nacional – ou seja, quase um terço do que recebem o 1% de mais ricos.
Esta situação que já vem há anos e anos com alguma piora nas últimas décadas, sem nenhuma perspectiva de mudança de rumos nos próximos anos, vai perdurar até quando? Será que é possível continuar assim sem que nada aconteça? Imaginar que isso seja possível, é imaginar que o Brasil está seguindo o mesmo modelo e sistema da Índia – uma sociedade de castas, onde uma elite rica, bem-educada e com altos padrões de consumo, vive alheia a uma grande parcela da população de miseráveis e de baixíssimos padrões de vida, e que, por ser uma sociedade altamente tradicionalista, não apresenta nenhuma possibilidade de mudança. Esta situação é claramente mostrada no filme indiano “O Tigre Branco” – disponível na Netflix.
Embora sem nenhuma participação da elite econômica brasileira, o governo federal tem procurado minimizar os problemas da classe mais pobre com alguns programas de transferência de renda, dos quais o “Bolsa-família” tem sido o exemplo mais conhecido. Mas parece claro que esses programas são paliativos que não resolvem de vez o problema da massa de pobres que vivem em condições muitas vezes sub-humanas. E a pandemia que se alastrou pelo País há mais de um ano só fez escancarar o problema, obrigando o governo a socorrer os já pobres e os empobrecidos pela crise viral com auxílios emergenciais que variaram de R$ 600 numa primeira etapa a uma média de R$ 250 neste ano.
Os “beneficiados” com esse programa chegaram próximo de 70 milhões – um número que assustou a todos. Entre os elegíveis ao programa estavam milhões de pessoas que já eram estruturalmente desempregadas e que já viviam às custas do programa “Bolsa-família”, além de outras famílias muito pobres que sobreviviam com menos de R$ 300 mensais. A esses grupos se juntaram outros milhões que se tornaram conjunturalmente desempregadas ou que perderam seus pequenos negócios em função da pandemia.
Já se tornou consenso que esse “auxílio emergencial” criado para minimizar um pouco os efeitos perversos dessa pandemia, bem como o claramente insuficiente “Bolsa-família”, terão de ser substituídos por um programa de auxílio financeiro de caráter permanente que retire todos os brasileiros do nível abaixo da “linha de pobreza” em que estão hoje.
Trata-se, claro, de um programa compulsório para resolver os problemas da miséria no curto prazo, mas ficarmos só nisso e lavarmos as mãos, os pobres continuarão pobres e na miséria, e sempre dependentes de governos demagógicos. É forçoso que se faça algo mais que isso, algo que resulte na eliminação da pobreza absoluta em nosso País.
E que algo seria esse? Não se pode advogar que o auxílio financeiro deva sempre ser aumentado – o chamado “bolsa-preguiça” que se traduziria no desestímulo à procura de um emprego. O que se propõe aqui é um programa permanente de investimentos na “terra dos pobres’, traduzido em mais e melhores escolas, mais e melhor assistência à saúde, mais e melhores habitações com água encanada e rede de esgoto.
Um programa desses exigiria recursos de tal magnitude que o orçamento público não comporta, dada a reconhecida crise fiscal que cada vez se agudiza mais. Daí a proposta de criação de um fundo específico para esse fim cujos recursos viriam de uma contribuição “forçada” da classe mais rica do País. Em princípio, seria de se propor a ampliação do hoje insignificante imposto sobre o patrimônio, mas existe quase que um consenso que tal imposto expulsaria os capitais para outras terras. Alguns estudos mostram que a maioria dos países que o adotaram tiveram de voltar atrás devido aos seus efeitos econômicos perversos. Mesmo havendo dúvidas quanto a esses estudos, pode-se admiti-los como verdadeiros a título de raciocínio.
Mas, e então, de onde se poderia obter os recursos para aquele fundo de investimentos “sociais”? A proposta aqui é a criação de um verdadeiro e significativo imposto sobre heranças, com alíquotas reais que poderiam variar de 10% a 30%, de acordo com o valor da herança. Quanto maior a herança, maior a alíquota.
A exemplo do que acontece com o imposto sobre o patrimônio, não faltará quem seja totalmente contrário a tal imposto, por isso e por aquilo. É claro que a grita maior virá dos “proprietários” que utilizarão de toda a sua influência sobre o governo e o os parlamentares – quando não sobre o sistema judiciário – para que a proposta não vá pra frente.
Racionalmente, essa reação é esperada. No entanto, já está passando da hora de a elite brasileira, sempre alheia aos problemas dos pobres e egoisticamente míope, começar a perceber que esta brutal desigualdade de renda que perdura há séculos não pode continuar por muito mais tempo. Já é chegada a hora para que essa elite dê um pouco de contribuição para que se resolva a questão da pobreza que os cerca.
Vale registrar que a taxação da herança está na pauta do dia dos países da OCDE. De acordo com David Bradbuy, diretor de políticas tributárias e estatística daquela Organização, a tributação sobre heranças é o “imposto certo na hora certa”, especialmente neste momento que se faz necessária a retomada da expansão econômica pós-Covid-19. Estudos da OCDE mostram que os custos de sua implantação são menores e causam menos distorções que o imposto sobre fortunas e patrimônio. É ponto pacífico que a riqueza herdada pelos que estão no topo da pirâmide perpetua a desigualdade de renda, criando um fosso cada vez mais fundo entre a classe mais rica e o restante da população (vide Folha de S.Paulo de 12/05/21).
Nunca é demais lembrar que, com os modernos meios de comunicação e as cada vez mais ampliadas “redes sociais”, os pobres estão cada vez mais tomando consciência da miséria em que vivem e da abastança e do consumo suntuoso de uma pequena classe de privilegiados.
Eu me lembro bem de uma palestra do economista Edmar Bacha, na FGV-Rio, lá na primeira metade dos anos 70, quando estava na moda a discussão do modelo econômico altamente concentrador de renda que vigia naquela época, e o palestrante já então alertava: a piora na desigualdade de renda deste País levará a Rocinha (favela) a descer para o asfalto mais dia menos dia. Na ocasião, a gente imaginava que esta descida seria assim meio que de repente e simultânea. Mas, não. A Rocinha foi descendo aos poucos e agora ocupa nossas ruas e nossos estacionamentos. Por enquanto esse processo apenas aumentou a insegurança de todos nós. Mas, estou intuindo que não demora muito para as “rocinhas” que existem em todas as nossas grandes cidades reivindicar um maior quinhão do bolo.
Talvez seja melhor começar a ceder os anéis para que não se percam os dedos.
*Mestre em Economia pela Kent University, Inglaterra
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