Dão Real Pereira dos Santos
Reduzir a carga tributária é uma solução para os defensores do Estado mínimo, mas um problema para quem defende o Estado de Bem-estar. Mais da metade da arrecadação tributária decorre de tributos sobre o consumo, que oneram mais os mais pobres. Somente 25% de toda a arrecadação vêm de tributos sobre patrimônio e a renda. Reformar apenas para tornar funcional um sistema estruturalmente injusto e desalinhado com a Constituição pode até aprofundar as injustiças.
Poucas coisas são tão consensuais na pauta política brasileira quanto a necessidade de reforma tributária. Podemos dizer que esse assunto está na ordem do dia há pelo menos 30 anos. Entra governo e sai governo, e o tema permanece, ainda que muitas modificações pontuais venham sendo implementadas. No próprio conceito de reforma está implícita a ideia de corrigir, consertar, ajustar algo que está com problemas, ou de aperfeiçoar o que pode ser melhorado. Ninguém pensa em reforma para piorar alguma coisa. As questões, no entanto, são: melhorar como, para quem e para quê?
Evidentemente que o sistema tributário brasileiro apresenta problemas, que precisam ser corrigidos, bem como, necessita de aperfeiçoamentos, afinal a sociedade e a economia mudam o tempo todo e a tributação precisa se ajustar. O sistema tributário de um país não se constitui de uma hora para outra, ele é o produto de um processo de acumulação, em que os problemas vão sendo resolvidos e o sistema vai sendo aperfeiçoado ao longo do tempo. Se, por um lado, há consenso sobre a necessidade de uma reforma, por outro, os problemas e os aperfeiçoamentos necessários têm significados distintos em função das diferentes expectativas que cada um carrega sobre o modelo de Estado, de desenvolvimento e de sociedade.
Portanto, o que para alguns são soluções, para outros, são problemas. Reduzir a carga tributária, por exemplo, é uma solução para os defensores do Estado mínimo, mas um problema para quem defende o Estado de Bem-estar. Para os defensores da economia primário-exportadora, a desoneração das exportações de matérias-primas é uma solução; para os defensores da ampliação das cadeias produtivas, pode ser um problema. Isso porque a tributação nunca será neutra, ela estrutura a sociedade a partir de uma concepção previamente determinada.
A configuração do sistema tributário brasileiro é resultado da atuação de pelo menos duas forças importantes. A primeira, exercida pelos setores dominantes, define a estrutura do sistema, ou seja, a distribuição da carga entre diferentes segmentos sociais bem como o seu papel na orientação da atividade econômica. A segunda, que não muda a estrutura, diz respeito às mudanças de caráter funcional, que são realizadas, normalmente, para corrigir problemas e organizara tributação para que tenha aplicação prática efetiva e coerência interna.
Alguns analistas classificam as propostas de reforma tributária entre amplas, que modificam todo o sistema, ou pontuais, que alteram apenas alguns tributos, e atribuem, à disputa entre essas formas de fazer, os problemas para o avanço das reformas em curso. Prefiro tratá-las como estruturais e funcionais e me parece que é aí que está localizado o conflito essencial. Uma reforma pode ser ampla e não modificar a estrutura, outra pode ser pontual e alterar substancialmente a estrutura da tributação.
O pragmatismo operacional e a hegemonia de um poder dominante desalinhado com os objetivos constitucionais determinam a configuração do sistema tributário como estruturalmente regressivo, orientado para privilegiar a acumulação, disfuncional para o desenvolvimento industrial e geração de empregos e extremamente benéfico aos mais ricos, inclusive no que se refere a sua aplicação efetiva, haja vista as enormes dificuldades impostas, por exemplo, às administrações tributárias para enfrentar as fraudes.
Ou seja, a tributação, desenhada sob medida para atender os interesses dos mais ricos, tem funcionado como um obstáculo ao cumprimento dos objetivos constitucionais. Para quem se aproveita deste modelo, as reformas de seu interesse serão sempre de caráter apenas funcional. Para os defensores do Estado social, é a estrutura que precisa ser modificada, ainda que seja, por meio de mudanças pontuais.
Afinal, como reduzir as desigualdades com uma tributação regressiva? Como promover o desenvolvimento, com uma tributação que onera a produção industrial e privilegia a exportação das matérias-primas? Como erradicar a pobreza se os pobres são os que mais pagam tributos? Como proteger o meio-ambiente se concedemos benefícios fiscais a atividades que o degradam?
Mais da metade da arrecadação tributária decorre de tributos sobre o consumo, que oneram mais os mais pobres. Somente 25% de toda a arrecadação vêm de tributos sobre patrimônio e a renda. Sem modificar esta composição estrutural do sistema, a exemplo do que a maioria dos países desenvolvidos já fez, e sem reconhecer a importância instrumental da tributação na indução do desenvolvimento, nossos problemas reais dificilmente serão resolvidos.
A influência dos setores dominantes fica evidente quando analisamos a evolução histórica da tributação da renda, desde a promulgação da Constituição Federal, em1988, quando foram estabelecidas as bases para a construção do nosso Estado de bem-estar social, para garantir os direitos sociais (Artigo 6º) e construir uma sociedade justa livre e solidária, promover o desenvolvimento, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos (Artigo 3º).
Obviamente que estes compromissos não seriam alcançados unicamente pelos gastos públicos, mas também pela tributação progressiva, como demonstram as experiências dos países que implementaram seus Estados sociais e que inspiraram os nossos constituintes. É inegável que tivemos avanços significativos nos investimentos sociais a partir da Constituição. Em 1990, a União utilizava cerca de 12% do PIB com gastos primários. Em 2016, este percentual estava próximo de 20%, longe ainda dos patamares, acima de 30%, dos principais países europeus, mas suficiente para quase universalizar o acesso à educação e à saúde públicas.
A tributação, no entanto, andou em sentido oposto. A progressividade tributária foi esvaziada em diversos momentos, contrariando o princípio da capacidade contributiva. Já em 1989, as alíquotas do Imposto de Renda das pessoas físicas foram reduzidas de 7 para apenas 2, e a máxima, de 45% para 25%. A sinalização não poderia ser mais explícita: os ricos não estavam dispostos a financiar o Estado social.
Não bastasse isso, em 1995, a Lei 9.249 isentou de imposto os lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas das empresas, inclusive quando remetidos ao exterior, desonerando outra vez os mais ricos do compromisso de financiar as políticas públicas. A partir também de 1995, a tabela do Imposto de Renda deixou de ser corrigida regularmente, fazendo com que a tributação se deslocasse, ano a ano, para rendas cada vez mais baixas, a ponto de o limite de isenção, que correspondia a aproximadamente 8 salários-mínimos, naquele ano, ser reduzido para menos de 1,5 salários-mínimos, em 2022. Ou seja, tivemos uma reforma estrutural na tributação da renda, na década de 1990, que alterou de forma expressiva a repartição do ônus tributário entre os diversos segmentos da sociedade. Além disso, outra sinalização dessa influência dos poderosos, é que, passados mais de 34 anos da promulgação da Constituição, ainda não conseguimos regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas.
Uma reforma tributária que tenha como guia o Estado social, um desenvolvimento inclusivo e sustentável, e a redução das desigualdades, tal como definidos na Constituição Federal, de 1988, precisa ser estrutural e no sentido oposto ao que ocorreu na década de 1990. No entanto, é evidente que, diferentemente de uma reforma funcional, reformas estruturais não se resolvem somente no campo da técnica, mas, principalmente, no campo da política e da correlação de forças.
O verdadeiro debate, portanto, deveria ser entre uma reforma estrutural ou uma reforma funcional, e entre as diferentes concepções de Estado e de sociedade, nem sempre explícitas, dos seus proponentes e defensores. Reformar apenas para tornar funcional um sistema estruturalmente injusto e desalinhado com a Constituição pode até aprofundar as injustiças. Por outro lado, alterar sua estrutura, no sentido da justiça fiscal, onerando mais os mais ricos e desonerando os setores mais pobres, vai torná-lo muito mais funcional aos objetivos constitucionais, inclusive, no que se refere ao desenvolvimento econômico.
O alinhamento da tributação à Constituição exige mudanças estruturais do sistema tributário, que podem ser aplicadas mesmo sem necessidade de emendas constitucionais. No entanto, é preciso ter em conta que a implementação de qualquer medida, mesmo pontual, que contrarie os interesses dos setores dominantes, depende da construção de uma nova correlação de forças, e isso é possível, desde que a sociedade, os movimentos sociais e os trabalhadores incorporem em suas pautas de lutas também o tema da justiça fiscal.
*Auditor fiscal, presidente do Instituto Justiça Fiscal, coordenador da campanha Tributar os Super-Ricos
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