Por Aguinaldo Diniz Filho*
O economista Antônio Delfim Neto, ministro da Fazenda durante os governos Costa e Silva e Emílio Médici, e da Agricultura no de João Baptista Figueiredo, costumava dizer, ao ser interpelado a respeito da histórica desigualdade social no Brasil, que “primeiro era preciso fazer o bolo crescer e só então fatiá-lo”. De lá para cá o bolo cresceu, diminuiu, voltou a crescer. Mas quase nunca – e isto vem sendo a tônica em nosso País desde o dia em que Pedro Álvares Cabral aqui desembarcou – este bolo foi realmente partilhado por todos os brasileiros, num contexto histórico em que fases de expansão econômica continuam a se alternar com as de estagnação ou recessão. É uma ciclotimia que vem marcando toda a história econômica e social do país.
O Brasil atravessa hoje, efetivamente, um desses momentos em que se procuram soluções. Há sinceras intenções de promover reformas, especialmente na economia, com o objetivo de estancar a sangria dos persistentes déficits públicos por meio de mudanças como as da Previdência Social, historicamente um poço sem fundo, e, já em fase de articulação, a tributária e a administrativa. Sozinhas, contudo, elas não serão suficientes e, pior, o ritmo em que avançam é lento. No dizer do economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, a agenda de modernização que vem sendo implementada, embora aponte para a direção correta, não tem a intensidade necessária. E isto, em suas palavras, resulta de um apoio oscilante do presidente da República.
Dados assustadores
O objetivo é, novamente, o de fazer crescer o bolo, enquanto o abismo da desigualdade social em nosso País continua aumentando. E, de forma ininterrupta, há mais de cinco anos. Segundo o estudo “A escalada da desigualdade” da Fundação Getúlio Vargas, realizado em meados deste ano, já há 17 trimestres consecutivos o abismo da desigualdade vem se aprofundando. Trata-se, nada mais nada menos, do mais longo período de aumento contínuo de concentração de renda no País. De acordo com o levantamento, nem mesmo em 1989, ano em que houve o pico histórico da desigualdade, houve um movimento de concentração de renda tão intenso e persistente. E a maior perda, é claro, recaiu sobre a população mais carente. Entre o quarto trimestre de 2014 e o segundo deste ano, a metade mais pobre de nossa população viu sua renda diminuir mais de 17%. No ano passado, segundo o IBGE, 40% da renda total do País se concentram nas mãos de 10% da população – um montante mais de 30 vezes maior que a média de renda dos 50% mais pobres.
No conjunto, os dados são assustadores:
Além da superação de tantos entraves, a ascensão de nosso País a um patamar digno, tanto em termos de desenvolvimento quanto de menor desigualdade social, deve passar também, obrigatoriamente, pela educação e pela capacidade de gerar empregos, fatores que, aliás, mostram acentuada interdependência. A verdadeira democracia, na verdade, se define e se constitui por educação de qualidade e pela universalização do acesso a ela.
O momento, aliás, é extremamente propício para a captação de recursos destinados a projetos de crescimento e desenvolvimento. A incrível liquidez que hoje se verifica em termos mundiais se traduz numa oportunidade ímpar de obtê-los e aplicá-los em iniciativas focadas na geração de empregos, na distribuição de renda e na redução das desigualdades, como as obras de infraestrutura, que têm imensa capacidade de absorção de mão de obra e das quais, aliás, o Brasil é extremamente carente.
Mudanças têm seu custo
Segundo a Fundação Getúlio Vargas, o Brasil está vivendo, hoje, o mais longo ciclo de aumento da desigualdade de sua história, com indicadores de concentração de renda aumentando continuamente a partir do segundo mandato de Dilma Rousseff, avançando pelo governo de Michel Temer e continuando a crescer com Jair Bolsonaro. Entre 2014 e meados deste ano, os rendimentos do trabalho entre os mais pobres e os mais ricos foram se distanciando gradativamente. Nesse período, a metade mais pobre população teve perdas de rendimentos superiores a 17%, enquanto os ganhos dos 10% mais ricos avançaram 10,11%. No meio termo, a classe média, houve um recuo de 8% na renda média, segundo a FGV-Social, e, especificamente entre os mais jovens, com idade entre 20 e 24 anos, a queda foi de 17,7%.
A explicação desses indicadores é a de que as pessoas dessa faixa etária encontram maiores dificuldades para se inserirem no mercado de trabalho, devido à pouca experiência, e a um outro fator, este irreversível: o crescente grau de automação, tanto em processos produtivos quanto em serviços e atividades correlatas, que extinguiu milhões de postos de trabalho. Foi-se o tempo (e isto na verdade não é recente) em que, na eventualidade de se precisar sacar uma quantia num banco qualquer era preciso ir ao caixa, apresentar um cheque ou um cartão (magnético, quem diria) para retirar o dinheiro.
Mudou para melhor? Sim, sem dúvida. Porém a um custo que, especificamente no Brasil, onde as enormes desigualdades sociais vêm se acentuando, é muito alto. Temos aqui não apenas os cerca de 12 milhões de desempregados que realizam pequenos serviços de caráter temporário, com ganhos médios de pouco mais de R$ 200, mas quase o dobro – 23,3 milhões – se acrescentados às estatísticas aqueles que não têm qualquer tipo de renda, vivendo na pobreza extrema. Somente nos últimos dois anos, de acordo com a FGV, mais de 6 milhões de pessoas retrocederam em termos de classe social e a renda dos 50% mais pobres se reduziu em 17%.
Claro, são problemas que obviamente, não podem ser resolvidos em curto prazo. Por mais que o Brasil invista em políticas sociais o rombo é tão grande que não há no horizonte grandes perspectivas de resolvê-los internamente até porque o crescimento do PIB tem sido menor que o da população. Mas os impasses precisam ser atacados logo, pois além de serem urgentes são cumulativos: dia após dia eles vão aumentando. Quaisquer que sejam as possíveis soluções elas passam, necessariamente, pela priorização de investimentos (o que pressupõe expansão) naquele setor em que o Brasil é extremamente carente e que dispõe de enorme capacidade de absorção de mão de obra: o de infraestrutura. E recursos para tanto, como já assinalado, não faltam. Estamos, portanto, num momento extremamente propício para captá-los.
Destruição de oportunidades
Percebe-se contudo, ao verificarmos a situação a que o Brasil chegou, uma certa indiferença governamental diante do aumento das desigualdades sociais, que aliás tendem, se nada for feito, a piorar. Em artigo publicado recentemente, o economista Paulo Paiva, ex-ministro do Trabalho no governo Fernando Henrique Cardoso e professor da Fundação Dom Cabral, fez uma apurada análise desta perspectiva. Segundo escreveu, o Brasil, que já tem um dos mais elevados índices de desigualdades sociais do mundo, está assistindo politicamente indiferente e eticamente neutro ao avanço do tripé que as compõem: as desigualdades de renda, as de riqueza e as de oportunidades.
Citando em seu texto o economista indiano Amartya Sen (para quem o desenvolvimento é um processo de criação de oportunidades para que as pessoas possam realizar seus projetos de vida), Paiva afirma que numa economia de baixo crescimento ou em recessão, como é o caso do Brasil desde 2014, o processo prevalente tem sido o da destruição de oportunidades. E também resume a questão ao dizer que algumas lições podem ser apreendidas a partir das experiências de diversos países: “as economias de mercado que apresentam melhor desempenho econômico sustentado são as que têm os melhores indicadores de igualdades sociais”.
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