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Desafogando o ganso

Por: Sérgio Augusto Carvalho
sergioamc@uol.com.br
Temo que algum vereador de BH, em busca de holofote, repita a iniciativa do seu colega paulistano, Laércio Banki (PHS), que conseguiu aprovar na Câmara Municipal um projeto, sancionado em 26 de junho pelo prefeito petista Fernando Haddad, que proíbe a produção e comercialização do foie gras (fígado gordo de ganso – ou pato) no município de São Paulo. O assunto virou polêmica na pauliceia e respingou no resto do país onde a cultura gastronômica tem algum valor.
Esse político, certamente, não consegue enxergar fatos mais horripilantes acontecendo debaixo do seu nariz na periferia de sua alçada. Com certeza, São Paulo é um paraíso em todos os sentidos – segurança pública, saúde, saneamento… É preciso buscar assuntos que geram polêmica e não os que afetam vergonhosamente a população.
Vetar a produção e comercialização do foie gras (pronuncia-se “foá grá”) é como proibir a entrada de mulher casada em motel com outra pessoa que não seja o marido! Nesse caso, o marido agradece!!! No outro caso, o ganso – ou o pato – não tem como agradecer. Trair o marido pode ser desumano. Mas engordar o ganso também é “tratamento desumano”, como justificou o vereador? (“Tratamento desumano dado aos gansos…”).
Essa iguaria é uma das joias da culinária no mundo inteiro. E das mais caras, juntamente com a trufa e o caviar. Seu uso é restrito por causa do preço. Poucas pessoas serão atingidas pela proibição, mas não se trata de defender nenhuma “maioria”. É a ideia da coisa. É a crueldade imposta ao ganso e ao pato – como se fossem as únicas vítimas dos homens no mundo animal.
O “problema” é o seguinte: para engordar desproporcionalmente o fígado das aves, os produtores as mantêm confinadas em espécies de gaiolas, de madeira ou metal, e puxam seu pescoço para fora enfiando pelo bico um funil que vai até o estômago e nele socando uma quantidade exagerada de milho engordurado, o que causa o crescimento anormal do fígado. Este processo é chamado de “gavage”, em francês. Hoje já existem outros procedimentos “menos cruéis” que não alcançam, entretanto, o resultado desejado.
O fígado engordado à força ganha um sabor inconfundível e insubstituível na preparação de certos pratos da alta gastronomia – e mesmo não sendo “alta” é caríssima. O seu uso não é recente. Os egípcios já o produziam e comiam há 1.200 anos AC. Não se sabe se o processo de produção era igual, mas certamente era semelhante.
O principal produtor e consumidor do foie gras é a França. Lá, os produtores e admiradores, que vão da plebe à aristocracia, enfrentaram problemas semelhantes com as ligas protetoras dos animais. Guerra ainda sem um vencedor definitivo – impossível de haver. Além da França, produzem o foie gras no mesmo nível a Hungria e a Espanha. Nos Estados Unidos, onde a produção é insignificante, movimento semelhante foi deflagrado por um chef de Nova Iorque, Charlie Trotter, que visitou uma fazenda e ficou chocado com o tratamento dispensado aos gansos. A partir desse dia, aboliu o foie gras dos cardápios de seus dois restaurantes.
Como celebridade no ramo, o chef Trotter gerou reação em cadeia e o estado da Califórnia foi o primeiro a proibir a criação de aves para se produzir o foie gras. Os opositores a tal medida conseguiram, cada um do seu jeito, driblar a proibição. A repercussão negativa ajudou, mas não impediu que Nova Iorque, Oregon e Massachusetts acompanhassem a Califórnia. Essas medidas, entretanto, estão presas por um fio. Os americanos sempre encontram um jeito de conseguir o que querem mesmo porque as preferências culinárias deles nunca se renderam aos francesismos. Esquecer a proibição é fatal.
República Tcheca, Noruega, Dinamarca e Alemanha também restringiram a criação forçada de animais para fins culinários. A discussão em torno do foie gras está longe de terminar. Se gera polêmica e traz notoriedade a quem a levanta, é certo que os próximos capítulos serão quentes. Os cardápios dos restaurantes de BH praticamente ignoram a existência dessa iguaria – assim como do caviar e da trufa, consideradas as três maravilhas da fina culinária. Mesmo porque grande parte da clientela por aqui nem sabe do que se trata.
As duas últimas vezes que vi a presença do foie gras como ingrediente nos cardápios de BH foram no Gomide (filé a Rossini) e no Dona Derna (fetuccini com foie gras grelhado). A produção, envolvendo patos e gansos – especialmente os gansos – é uma incógnita em Minas. Aqui é duro de achar algum produto diferente. Para se ter uma ideia, busco há uns dez anos alguém que crie Frango Capão no estado inteiro. Até hoje não tive nenhuma pista. Nem de quem crie, nem de quem saiba capar o frango… Essa prática é antiga, mas só no Sul do país há quem conheça o procedimento.
Voltando ao fígado do ganso, leio sobre o assunto há muitos anos. Na França, os protetores dos animais têm argumentos discutíveis, assim como os defensores do lado oposto. Será que as aves sentem que estão sendo tão maltratadas assim? Não seria o caso de mudar, também, o tratamento dado às aves nas granjas e aos porcos nas pocilgas? É justo manter presos em gaiolinhas mínimas os frangos antes de serem impiedosamente abatidos? E encher de comida os porcos até que não consigam mais levantar do chão os seus míseros 200 quilos de banha? Assim como os gansos, se não servem para virar comida, para que servem as galinhas e os porcos?
A humanidade seria mais feliz vendo gansos, galinhas e porcos morrendo de velhice soltas por aí? Na verdade, não sei ainda se essa discussão gerada a partir do projeto desse vereador paulistano tem como finalidade proteger o animal, impedir o trabalho do fazendeiro ou controlar o que o consumidor deve ou não comer. O lado dietético da gastronomia nunca foi muito importante nem dependeu de leis para que os seguidores da comida saudável mantivessem a sua linha.
Os grandes e pequenos chefs de cozinha dos maiores restaurantes de São Paulo execraram a medida – independente de terem ou não o foie gras em seus cardápios. Afinal, é função desses políticos limitarem o que pode ou não pode ser produzido com o sacrifício “desumano” de certos animais? Não há como saber se os gansos se sentiram aliviados e aplaudiram a ideia. Sei que quem não gostou, certamente, é que vai pagar o pato: o consumidor.
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