Vaca leiteira era na Água Limpa. Ali, debaixo dos olhos do dono, tudo prosperava. Já gado solteiro, bezerro desmamado, novilha prenha, mas não mojando ainda, vaca falhada, garrote recriando, era na Invernada, três léguas no rumo da Cachoeira Alegre.

Lá imperava Felizberto,  sistemático, mas danado de trabalhador. Vivia correndo divisa, conferindo o estado da cerca e da criação, volta e meia dava sal e passava as vistas. Só tinha um defeito: gostava e sapecar uma mentira ou, como dizia o povo, queimar campo. Sô Camilo, o patrão, ficava fulo da vida. Mas, passada a raiva e pesadas melhor as coisas, acabava relevando. Afinal de contas, não andava fácil achar quem tolerasse viver num fundo de grota daqueles, sem conforto nem recurso. Então, deixava o barco correr.

Um dia, o velho Camilo foi olhar a Invernada, como fazia de vez em quando. Era hora de levar umas novilhas  pro curral, não demorava a abrir mojo, logo dava cria. Como sempre, aproveitou pra conferir o gado. Conhecia cada rês pelo nome. Nascido na Água Limpa, sabia de que vaca era; no caso de compra, de quem é que tinha apanhado, quanto custou, quando tinha vindo pra Invernada, tudo guardado na cachola. Olha daqui, olha dali,   deu falta do bezerro castanho machetado de branco, filho da Dinamarca.

–  Cadê? Não tou vendo por aqui.

O capataz limpa a goela, dá uma baforada no pito e responde:

– Eu até ia contar pro senhor, acabou não dando tempo. Esse tal, sucedeu um caso com ele…

– Ah, é? – disse o patrão dando corda.  – E que caso foi esse?

– Uma suçuarana, Sô Camilo.

– Uai, não sabia que andava dando onça por aqui não.

– Pois tá. Precisava ver o tamanho da  bitela. Que nem um garrote.

– E pegaram ela?

– Quando a cachorrama farejou, fez aquela latomia, eu peguei minha flobé. Fomo de galope, dei com ela já em riba do garrote.

– E aí?

– Aí, Sô Camilo, grita daqui, estuma cachorro dacolá, mas era tarde: a gatona já tinha chupado o sangue do infeliz.

– E ela, deu pra matar?

– Na hora, patrão. Morreu sem saber de quê que foi.

– Em todo caso, ainda valeu a pena, né mesmo?

Passou.  Escolhido o gado que ia pra fazenda, Camilo aceitou o café da comadre. Antes de entrar, perguntar pelas novidades, ele viu, num galho de jacarandá do lado da casa, um couro esticado,  secando ao sol e ao sereno. Pelo tamanho, era bezerro ainda querendo virar garrote. Mais de perto, reparou que era castanho escuro, machetado de branco, igualzinho o filho da Dinamarca. Indagou, apontando:

– Uai, Felizberto, de que bicho é esse couro?

– É a suçuarana. A cuja que eu falei.

– Mas e a minha marca, bem no quarto direito?

– Sim, senhor. E não haverá de ser?

– Como é que pode uma coisa dessa?

– Conforme eu contei, foi a conta dela matar o bezerro e a gente chegou. Aí lembrei  que o ferro de marcar tava comigo.

– Sei – respondeu o patrão, esticando a corda.

– Botei a cachorrada tomando conta da onça, quentei o ferro até ele avermelhar. Então, taquei nela, com vontade. E ainda  falei: “Isso, ó, é  procê aprender a sair matando criação dos outro por aí. Cê morre, desgraçada. E morre com a marca do patrão. Que é o dono dessas terra e de tudo o que veve  por riba desse chão”.

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