Uma das grandes idiossincrasias (ou bizarrices) do Brasil é composta por nosso Registro Civil (certidões de nascimento e casamento, por exemplo) e por nossa Identificação Civil materializada no Registro Geral, o famoso RG. Eu já chamei o que temos por aqui de sistema de identificação, mas percebi que se trata de um erro dos mais grosseiros. Sistema implica em conjunto de órgãos que atuam individualmente, mas com objetivos afins e em sintonia.
Não temos nada disso.
O brasileiro tem sua Certidão de Nascimento lavrada com base em Declaração de Nascido Vivo, documento que tem validade jurídica, e seu RG emitido por institutos de identificação estaduais, com características muito regionais e validade em todo o território nacional. O primeiro é um problema difícil de sanar, pois tanto a declaração de nascido vivo quanto a certidão de nascimento, apesar das últimas evoluções, não são documentos seguros, com requisitos mínimos de rastreabilidade, como um QR Code para validação das informações. Além disso, há lugares em que a tarefa de emissão do RG é realizada por outras entidades, como no Rio de Janeiro onde o documento é confeccionado pelo Detran.
Soma-se a este cenário o fato de que as bases dos estados não estão conectadas. Não é possível haver conferência dos dados de um RG no Maranhão se o indivíduo tiver emitido sua identidade no Acre, por exemplo. Este cenário propicia, inclusive, que um mesmo brasileiro possua mais de um (ou vinte e sete) RG produzidos por institutos de identificação diferentes.
Na ausência de cadastro único, as autoridades que realizam fiscalização das estradas recorrem a Carteira Nacional de Habilitação na abordagem dos condutores de veículos, mas essa alternativa não se aplica a outras pessoas que estejam como carona em carros particulares ou como passageiros de empresas interestaduais de transporte terrestre. Como poderia ser possível que um policial rodoviário conhecesse todos os detalhes dos RG emitidos em 26 estados, além do Distrito Federal?
O cenário é convidativo para criminosos fugitivos e para estelionatários que precisam se passar por outra pessoa. Sim, no Brasil é possível produzir artificialmente uma pessoa.
A CNH e o CPF são documentos nacionais com números únicos, mas eles não se destinam a identificar civilmente as pessoas, mas sim a qualifica-las para condução de veículos automotores e para o exercício da vida econômica. É importante lembrar que ambos podem ser emitidos com base no RG, logo se o documento de identidade é falso, eles não terão a serventia adequada.
Uma luz no fim do túnel parece possuir vocação para a resolução deste problema.
De forma inédita, o Decreto 10.900, de 17 de dezembro de 2021, estabelece normas gerais que visam à integração e à padronização dos processos de identificação por meio do que o texto chama de Serviço de Identificação do Cidadão. Do ponto de vista técnico, o texto garante muito mais segurança e praticidade, além de atacar a burocracia que envolve o assunto.
O número do CPF será utilizado em conjunto com o do RG, e no futuro será possível a integração entre as bases biográficas e biométricas dos institutos de identificação dos estados. Assim, aqueles profissionais que precisam confirmar identidades nas fronteiras do Brasil poderão fazê-lo por meio de consulta simplificada em barramentos oficiais do Estado.
Vai dar certo?
Não é possível dizer que a publicação do Decreto impulsionará o desenvolvimento das tão necessárias ferramentas no combate ao crime organizado. No Brasil, tentativas de unificação da identificação estão em stand by, como o Registro de Identidade Civil (RIC) a Identidade Digital Nacional (ICN) e o Documento Nacional de Identificação (DNI).
O decreto é promissor.
Resta esperar.
*Edmar Araujo, presidente executivo da Associação das Autoridades de Registro do Brasil (AARB). MBA em Transformação Digital e Futuro dos Negócios, jornalista. Membro titular do Comitê Gestor da ICP-Brasil