Olavo Romano
Demosthenes era alto, inteligente, elegante. Falava bem, entendia de muitos assuntos fora do ramerrão do lugar. Interessava-se por política, observava as pessoas com humor e ironia, indignava-se com injustiças e queria reformar o mundo. Solteiro, caminhando para os trinta, era amigo de Seu Olímpio, um dos fazendeiros mais ricos da região. Costumava aparecer de tardinha, pegava na prosa, às vezes pousava na fazenda.
Dentista prático desde os dezessete anos, acabara de se formar em Ubá, para onde ia um pouco a cavalo, depois de ônibus e, finalmente, de trem, fazer provas semestrais na escola em que a frequência não era obrigatória.
A família do genro Zezé morava perto e todos tratavam bem o dentista – porque gostavam dele, um pouco por consideração ao patriarca, e também na secreta esperança de que ele pudesse se casar com Maria, irmã de Zezé, que passava longas temporadas em sua casa.
Mas os olhos do dentista estavam em Waldete, pouco mais que uma menina, doze anos mais nova.
Ganhava dinheiro costurando desde quando, aos quinze anos, fizera o primeiro vestido de noiva. O pretendente lhe mandava, pelo pai dela, revistas de moda, os figurinos, com bilhetes amorosos escondidos. Quando o coração dos dois acertou os compassos da forte batida, fechouse o tempo: a diferença de idade era enorme, ele era rebelde, comunista, ateu e, pior, não tinha tronco, pois era filho de padre. A oposição da família da jovem e o dedo na ferida sempre aberta na vida dele estimularam o casamento, ele com trinta, ela com dezoito anos.
No arraial, pequeno e ermo, os filhos iam chegando, amiudados – um na barra da saia, um no braço, outro na barriga. Se alguém o via na rua, altas horas, dizia: “Lá vai o Nonô Dentista buscar parteira”.
Estimulada pela crescente freguesia, ela costurava até tarde, depois da lida, numa Singer de pé, à luz do lampião, ajudando nas despesas, que cresciam junto com o tamanho da família. Mas nunca se queixou. “Mais difícil do que criar quinze filhos foi perder três”, diria anos depois.
“Nós somos uma família nova”, repetia Demosthenes. A gente ouvia o imperioso mandamento sem entender que se tratava de sua paternidade manca, da falta de tronco, um tronco que se haveria de construir com estudo, trabalho, integridade, modéstia e solidariedade.
Mesmo com os serões de costura dela e as pontes, canais, extrações e dentaduras dele, o dinheiro era curto para tanto sonho. Terminado o grupo escolar, os mais velhos foram saindo, meninos ainda, caçando rumo na vida – menos Cláudio, o primogênito, que recusou uma mula de primeiro repasso, arreata nova, para fazer ao menos o ginásio agrícola. Quando uma amiga contou da peleja para formar quatro filhos, minha mãe informou: “Formei quinze sem saber como”. Cláudio perguntou se ela estava ficando mentirosa depois de velha, ela deu de ombros: “Ah, você é formado na escola da vida, a melhor que existe.” Quixote inflexível e destemido, meu pai foi contra a ditadura em pleno Estado Novo. Passou por longos interrogatórios policiais, sofreu agressão física, recebeu os pracinhas da terra com um banquete, soltou um caminhão de foguetes na vitória da UDN local, pintou o “V” da vitória nas paredes externas da casa, teve a residência varejada pela polícia na ditadura militar.
Jamais conseguiu ter em mãos o almejado diploma. Alegaram incêndio na escola e um famoso advogado referiu-se a “boi na linha”.
Quando, quase no fim da vida dele, descobri que o precioso documento estava na divisão de segurança e informação do MEC, ele falou: “Ir lá e pegar com seu amigo não tem graça nenhuma. Bom era quando tinha de brigar por ele”. Embora tido como ateu, conhecia a Bíblia, era amigo do Bispo, alegrou-se com o Concílio Vaticano II, deixou um belo poema de ação de graças.
Viúva, quinze filhos criados, netos e bisnetos chegando, Waldete reviveu no serviço solidário e amoroso.
Fez roupinha na creche, costurou na Santa Casa, mexeu enormes panelas em encontros religiosos, cuidou de idosos (alguns mais novos do que ela), apoiou seminaristas pobres, curou umbigos sem conta, vestiu defunto, fez ginástica, fez yoga, participou de desfile de moda beneficente, foi jurada de escola de samba, dançou vestida de homem em festa junina até se aborrecer com as gozações por uma foto no jornal.
Dona Blandina, seu par nas quadrilhas de São João, decidiu: “Então eu visto de homem pra gente continuar dançando”.
Aos noventa e seis anos, sua vida plena e fecunda foi-se exaurindo, em poucos dias ela se entregou.
Prostrada, acabou no hospital.
Quando cheguei para a visita que seria a última, ela me olhou por trás da máscara de oxigênio e disse: “O enterro não é hoje não.” Na manhã de sete de junho, ela se foi. “Esperou o sábado, pra facilitar”, observou Leo, sempre atento.
Pingo, o gato da vizinha que vivia atrás dela, passou longo tempo sobre o muro, entristecido e desanimado de descer. Entre os que foram se despedir, muitos órfãos que ela deixou pela cidade. No velório, Cláudio disse: “Isso é uma celebração”.
Depois da missa de corpo presente, em clima de emocionada surpresa, um querido amigo da família cumpriu desejo de minha mãe, entregando a cada filho(a) um vaso de violeta, que erguemos acima de seu corpo num último brinde. Lembrando que num Dia das Mães não muito distante Kátia havia lhe dado uma bandeja com 15 vasinhos de violeta, pensei numa misteriosa sintonia entre elas. Ao saber que o pedido de mamãe era anterior, duas coisas me intrigaram profundamente: o fato de Kátia haver lhe dado, sem nada saber, exatamente o presente que ela daria aos filhos na hora da partida; e o que mamãe deve ter sentido e pensado com a surpreendente coincidência, sem nada manifestar.
O enterro acabou de noite, com música, cantoria, gratas lembranças, muita emoção e pouca lágrima, quando Bené, o irmão caçula, disse: “Olha, gente, a prosa tá boa, mas o pessoal do cemitério precisa descansar”.
Na casa em que ela viveu por longos anos, três gerações entrelaçadas, saboreamos suculenta sopa, celebrando aquele momento de união, que ela queria para sempre, sua clara presença pulsando no coração de cada um.
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