JK: o grande objetivo do homem sobre a Terra é alcançar a felicidade

A natureza da tarefa a que me convocastes, e a circunstância de falar a professor e alunos da Faculdade de Ciências Médicas, impõem delimitar, através das numerosas sugestões de assuntos e ideias que o espetacular desenvolvimento de ciência atual desperta em nosso espírito, um pensamento central nas considerações que desejo levar a tão seleto auditório. Que este pensamento central objetive, então, as tendências da medicina em nossos dias, especialmente do ponto de vista de sua evolução e dos aspectos sociais que ela envolve.

Naturalmente, este tema se terá fixado em nossa escolha, menos por ser governador do Estado, a cuja tarefa cotidiana se associam os mais variados assuntos de ordem social, como principalmente por ser médico e, assim, sempre sensível às inspirações da nobre carreira que abracei e que me honro de ter exercido durante gratos anos de minha vida.

Estou certo de que poucos problemas, dos muitos que se apresentam aos governantes e às elites dirigentes, assumirão hoje, neste cenário de inquietação em que vivem os povos, maior importância do que a assistência social, principalmente em seu aspecto médico, que os responsáveis pela coisa pública têm por preliminar obrigação prestar à coletividade, seja assistindo aos portadores de doenças, seja, também, – o que se afigura, aliás, mais importante, – propugnando por medidas de defesa médico-social, de profilaxia e de higiene, a fim de que os que são ou se supõem sadios possam contar com alguma coisa mais do que a simples e ilimitada resignação com que a maioria das populações enfrenta os problemas da luta pela vida.

Dificilmente poderíamos imaginar um mundo menos inquieto e menos sofredor do que o de hoje, sem cuidar da superação dos fatores destrutivos que atuam sobre uma sociedade que é, dia a dia, mais vulnerável do ponto de vista físico e psicológico, tal a sua constante desvitalização por influências de ordem econômica, e, principalmente, de ordem emocional.

Esse conjunto de forças que nos solicitam, disputam, empolgam, atritam e dilaceram, tem agravado sensivelmente o desajuste entre o homem e o seu ideal de vida.

Num mundo mais simples, sem a complexidade, a corrida, a agressividade e a sofreguidão de nossos dias, a alma vigorosa de São Paulo não pôde fugir a um doloroso desabafo.

Não queremos – escreveu o Apóstolo aos Coríntios – não queremos que ignoreis a tribulação que nos sobreveio na Ásia, porque fomos maltratados, desmedidamente, além de nossas forças, a ponto de sentirmos o tédio da vida.

Que diremos do homem de nossos dias, considerando que, além do quinhão de provações inerentes ao ser humano, tem de se ajustar a um ritmo de vida que evidentemente supera as forças de seu organismo?

Segregados nos gabinetes de trabalho, nas fábricas e nos múltiplos setores de atividade, os homens, hoje, recebem sobre o psiquismo impactos constantes que lhes alteram radicalmente a interpretação dos fatos da vida.

Tornam-se vulneráveis a uma série de perturbações nervosas que decorrem da pressão do meio social e que se rotulam no complexo das enfermidades que por influência de temas emocionais desgastam uma sociedade atormentada por aspirações sempre crescentes e insatisfeitas. As guerras que assolaram o século atual, com o cortejo das inquietações que o medo, a intranquilidade e as reivindicações geram, abriram ao estudo deste capítulo psíquico-social uma perspectiva sem limite.

E a humanidade marcha, hoje, oferecendo, às vezes, uma aparência de robustez física, quando na realidade não tem a saúde mental nem o repouso de espírito que tornam os homens felizes.

Há pouco, em visita ao Estado de Minas, procurou-me ilustre figura dos meios financeiros europeus, residente às portas de Paris.

Contava-me ele que tomara contato espiritual com a vida em plena juventude, ao marchar para a guerra de 1914. No intervalo desta com a de 1939 só o preocupava, na direção de grandes empresas, a possibilidade de novo conflito, que de fato não tardou a vir.

Superado este, já outro ainda mais alarmante se apresenta, roubando a todos a confiança necessária à expansão de novos empreendimentos.

O jantar que lhe ofereci no Palácio da Liberdade, seguido de longa palestra, constituiu para mim uma lição de psicologia social, através da qual senti a profunda angústia que espreita a humanidade, com reflexos decisivos sobre o psiquismo do indivíduo.

Relatava ele que durante anos tivera as suas fábricas, escritórios e residências ocupados pelo invasor, ouvindo no silenciar da noite o passo cadenciado dos rondantes imperturbáveis que os vigiavam ininterruptamente. Quartos, objetos e papéis eram vistoriados repetidamente, numa sequência enervante de humilhações, que se estendia por semanas, meses e anos a fio, provocando um desgaste emocional, que, também, incidindo sobre milhares de outros seres, havia de produzir uma sociedade psicologicamente enferma.

Torna-se indispensável a criação de terapêuticas especial, que contrabalancem os desgastes do corpo e do espírito, e nesse sentido a nossa ciência nos oferece, mormente nos domínios da psicologia médica, perspectivas do mais profundo alcance.

 

Só, com efeito, o estudo amplo e compreensivo das novas tendências da medicina, em seu sentido físiopsicossocial, poderia resolver os problemas do atormentado homem moderno, com os seus temores e suas esperanças, na luta sempre árdua contra a doença do indivíduo e das comunidades.

A localização de processos patológicos foi, durante muito tempo, o principal objetivo no estudo das causas das doenças, porque a descoberta dos mais delicados métodos de observação, especialmente através do microscópio, revelou um mundo novo permitindo uma visão sem precedentes nas mínimas partes do corpo.

O gradual e progressivo desenvolvimento de métodos de pesquisa na anatomia, a partir da Renascença, permitiu um estudo preciso do organismo humano, conduzindo o médico a um conceito etiológico mais topográfico, principalmente depois que Morgagni afirmou, em meados do século XVIII, que a sede de várias doenças era nos órgãos, como coração ou fígado. A inversão do microscópio confirmou mais ainda a localização da doença, porque a célula tornou-se a sua sede, ficando clássico o aforismo de Virshow de que não há doenças de ordem geral, mas sim doenças de órgãos e células, e, por isso, durante um longo período ficou limitada à simples procura de alterações morfológicas dos tecidos.

A evolução social, que se tem verificado no mundo nestes últimos tempos, tornou, porém, inegável a observação de fatores outros além dos de natureza física ou química na estrutura genética de quase todas as doenças. Pode-se dizer que a moderna medicina clínica como que se dividiu em duas partes heterogêneas – uma, científica, porque oferece base experimental, visto que estudo as perturbações que encontram explicação na fisiologia e na patologia geral, e a outra, tida como menos científica, que estuda o vasto conglomerado de doenças de fundo psicológico e social.

A duplicidade desse conceito frequentemente se reflete na conduta profissional do médico, quando ele se escusa com a declaração de que a atividade médica não é somente uma ciência, mas também uma arte. Apenas, o que lhe parece ser uma arte nada mais é do que o profundo e intuitivo conhecimento que alcançou sobre as coisas e os homens, durante longos anos de sua experimentação clínica. E muitos fatores até então negligenciados nas especializações médicas tornaram-se elementos de particular importância na atualidade, porque não se pode admitir mais que haja divórcio entre as técnicas físicas de investigação médica e as de natureza psicológica e social.

Durante o último século, a medicina preventiva assumiu grande desenvolvimento com o estudo das doenças infecciosas. Mais tarde, no período entre as duas guerras mundiais, foi sensível o interesse pelo estudo das doenças e dos distúrbios da nutrição enquanto que hoje uma nova conceituação, mais ampla, vem fundamentar aspectos médico-somático e psicossocial, e isso só foi possível depois da criação de certos processos de investigação médica que fizeram surgir das sombras do inconsciente, com o estudo da dinâmica psicológica, um mundo novo, totalmente desconhecido na filosofia, na sociologia, nas artes plásticas, na moral, na educação, e, enfim, em todas as formas de criação espiritual e do conhecimento científico. A introdução de nova metodologia psicológica e social na investigação médica permite um estudo mais cabal do indivíduo enfermo e da projeção de sua enfermidade no grupo social a que pertence, porque, enquanto a medicina psicossomática focaliza o indivíduo, a medicina social considera a sociedade. Ora, um grupo social, como um indivíduo, deve ser encarado do ponto de vista médico, física e psicologicamente. No seu aspecto físico, o grupo social é uma população com suas necessidades materiais, tais como alimentação, abrigo, vestuário, assistência contra todas os tipos de doenças. Se essas necessidades não forem satisfeitas, sua saúde declina e o grupo se torna doente, caracterizando-se pela elevada incidência de enfermidades e de óbitos, em virtude da desnutrição, das doenças infecciosas, das infestações de toda ordem.

No seu aspecto psicossocial, as populações são grupos de indivíduos que necessitam de assistência para suas necessidades sociais e psicológicas, porque, se elas não forem satisfeitas, sua saúde psicológica, que é também sua saúde social, declina, e o grupo se torna socialmente enfermo.

Se é verdade que a medicina preventiva do século passado se orientava quase exclusivamente para o significado etiológico do meio, em seu aspecto físico, hoje a tendência é para a progressiva compreensão do meio em seu aspecto psicossocial e do fortalecimento psicológico do indivíduo, a fim de que ele disponha higidez de seu psiquismo, para a melhoria de um mundo que se torna cada vez mais desintegrado do ponto de vista social, em virtude do relaxamento dos padrões compatíveis com a existência, manutenção e a sobrevivência da comunidade, principalmente pelas modificações que se processam nas normas clássicas de vida familiar, cultura, econômica, de tanta significação no sistema social.

Por tudo isso, a medicina social pressupõe conhecimentos sociológicos profundos e extensos e instaura uma técnica que afeta em seus processos e em seus objetivos não apenas à classe dos médicos, a que incumbe defini-la, exercê-la e, também, aprimorá-la, mas ao próprio poder público e à coletividade em geral. É requisito fundamental para a normalidade da vida em comum ou na sociedade a adaptação do indivíduo no seu meio. A medicina social não pode deixar de encarar esse requisito básico, e as suas tendências atuais o demonstram de maneira brilhante.

O grande objetivo do homem sobre a Terra é alcançar a felicidade. É esta a firme e radiosa estrela a velar nas sombras que nos envolvem e cuja luz nítida e viva ilumina o fundo de nossos caminhos. Os poetas, os filósofos e os sábios, ao longo da história da humanidade, tiveram-na diante dos olhos, procurando, através de suas obras, ensinar os homens a descobri-la e a conservá-la. Os políticos e os homens de Estado, por sua vez, propondo-se guiar o destino dos povos, a outra coisa não visam no âmago de sua consciência senão a essa busca da felicidade, procurando criar melhores condições de vida e de bem-estar para todos.

A luta incessante da humanidade por esse objetivo essencial confunde-se com a própria ação humana, mesmo em seus aspectos aparentemente mais insignificativos. O homem logrou vencer grande obstáculos que se apresentavam à sua ânsia de felicidade e de aperfeiçoamento intelectual e material. Dominou as montanhas, os oceanos e os ares, transformando-os em caminhos dóceis para as suas máquinas de transportes, eliminou as distâncias, através das comunicações radiotelegráficas e da televisão, dando à sua voz um alcance coextensivo à superfície do globo e captando os raios que formam as imagens visuais, para transmiti-los através do espaço; domou, por assim dizer, os elementos, pondo-os a seu serviço.

No campo da medicina, essa mesma luta assumiu aspectos dramáticos. Desde a descoberta do micróbio, o infinitamente pequeno vinha desafiando o esforço dos sábios e dos cientistas, que buscavam ansiosamente o meio de combatê-lo como agente das enfermidades que afligem a humanidade. Apesar de todas as suas extraordinárias conquistas no domínio da ciência e da técnica, depois de devassar os oceanos e os espaços atmosféricos e estratosféricos, depois de subjugar a eletricidade, a luz e o som, o homem descoroçoava ante o micro-organismo, que se mostrava superior aos seus esforços. Recentemente, porém, surgiu a espetacular vitória da medicina, com a descoberta dos antibióticos e a notável contribuição de Fleming com a penicilina, encontrando-se o meio com que fazer frente ao infinitamente pequeno em sua obstinada guerra contra a humanidade.

É evidente que tais resultados representam o sacrifício de sábios abnegados que, no silêncio dos laboratórios e dos gabinetes, consagram a força de sua inteligência e o vigor de seu corpo a um desinteressado e nobre ideal. Discorrendo sobre a investigação científica e os sacrifícios em meio aos quais se atingem novas etapas na sua evolução, escreveu o grande médico português Egas Moniz, laureado com o Prêmio Nobel de Medicina: “As descobertas não vêm ter com os investigadores, como dons que lhes são devidos. Provêm sempre do resultado de meditação aturada e de esforços cuidadosos e contínuos. Só com trabalho metódico e persistente se consegue alguma coisa de novo para o avanço da ciência”.

O progresso da medicina vem, assim, trazer elementos preciosos ao homem para o seu bem-estar e para a sua felicidade sobre a Terra. Ao poder público, a que incumbe parcela de grande responsabilidade na proteção da saúde do povo, oferecem-se agora novos meios de ação, com o aprimoramento das conquistas médicas em todos os domínios de investigação, especialmente no campo social. Essa luta não cessa, todavia, e cada nova conquista representa um ponto de partida para outra conquista ainda mais valiosa e significativa.

*Texto extraído da coletânea “JK: Profeta do Desenvolvimento – Exemplos e Lições ao Brasil do Século XXI” – 3 volumes e 2.336 páginas, de autoria de Carlos Alberto Teixeira de Oliveira e publicado por MercadoComum – Referência básica: Palestra proferida pelo governador de Minas Gerais Juscelino Kubitschek de Oliveira, ao se iniciarem os trabalhos letivos da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Católica, em Belo Horizonte, a 18 de março de 1953

MERCADOCOMUM estará circulando, em dezembro, com uma edição especial impressa e outra eletrônica trazendo matérias sobre os premiados, as empresas/instituições e personalidades – destacando a relevância desta iniciativa para a economia e o desenvolvimento de Minas Gerais. Cabe, ainda ressaltar, a importância da realização desse evento, que reúne expressiva parcela formadora do PIB mineiro e obtém ampla repercussão na mídia em geral. Nesta edição especial constará o descritivo do XXVIII Ranking de Empresas Mineiras, listando-se as Maiores Empresas de Minas – em ordem alfabética, por setor econômico, receita operacional líquida, resultado, patrimônio líquido e ativos totais, entre outros.

MercadoComum, ora em seu 31º ano de circulação e em sua 336ª edição é enviado, mensalmente, a um público constituído por 121 mil pessoas formadoras de opinião em todo o país diretamente, via email e Linkedin, Whatsapp,Telegram, além de estar disponibilizado, para acesso, o seu site www.mercadocomum.com, juntamente com as suas edições anteriores. 

De acordo com estatísticas do Google Analytics Search a publicação MercadoComum obteve – de 31 de agosto de 2023 a 1º de setembro de 2024 – 36,4 milhões de visualizações no acumulado do período.

SEO Muniz – Especialistas em tráfego orgânico Google AI

Planejamento Detalhado de SEO