Luiz Paulo Rosenberg*
Dentro da pletora de heresias cometidas no País na formulação da política econômica, nada suplanta o Plano Cruzado, de 1986. De fato, a tentativa de eliminar um processo inflacionário galopante através de aumento de salário real, descaso com o déficit fiscal, juros reais negativos, congelamento de câmbio e demais preços constitui um marco hediondo na violação de saberes consagrados na Teoria Econômica.
Mesmo assim, o Plano teve uma virtude para o futuro da sociedade: pela primeira vez, os políticos brasileiros puderam constatar que a população atribuía uma prioridade elevada à estabilidade de preços. Rompia-se, então, o armistício demoníaco entre Esquerda e Direita, que vilipendiava o combate à inflação. De fato, para a Esquerda, o enfrentamento da inflação, por esfriar a atividade econômica no primeiro momento, era uma artimanha das elites para jogar sobre as massas o ônus da estabilização; já a Direita, incapaz de persuadir os eleitores de que um sacrifício inicial traria bons frutos no futuro, limitou-se a mitigar os efeitos deletérios da inflação sobre o processo produtivo, refinando continuamente um sistema de ajustes automáticos de preços, que permitia a funcionalidade do lado real da economia, ainda que com o agravamento da concentração de renda. O Plano Cruzado teve o condão de esfregar na cara dos condutores do País que a sociedade, mais do que nada, ansiava por estabilidade de preços.
Daí em diante, todos os governos colocaram a luta contra a inflação no topo de suas prioridades. Até a implantação do Plano Real, acreditava-se que o vilão da inflação fosse o sistema de indexação. Então, bastaria eliminá-lo para a espiral de preços arrefecer. Vem, então, uma leva de intervenções atabalhoadas – verdadeiros estupros à lógica econômica – que desaguavam inexoravelmente em novo surto inflacionário, com credibilidade cadente dos governantes.
Por que fracassavam? Porque focavam na cereja e não no bolo. Vale dizer, qualquer plano anti-inflacionário precisaria preencher algumas condições básicas para ter sucesso: equilíbrio fiscal, politica monetária ativa, solvabilidade internacional e acesso comercial aos mercados. Só após satisfazer estas condições é que a eliminação da indexação passaria a ser o obstáculo focal à estabilidade dos preços.
Reunindo uma equipe de criativos economistas que conheciam e respeitavam o saber econômico, o Governo Itamar pôde dar continuidade ao processo de abertura e modernização da economia brasileira, canhestramente iniciado por Collor.
Assim, na construção do Plano Real, o equilíbrio das contas públicas foi obtido a duras penas. A taxa de juros passou a ser o instrumento principal de dissuasão de excesso da Demanda Agregada; liderada por Pedro Malan, a saída da moratória completou-se em condições vantajosas para o Brasil. Preenchidas, pois, as pré-condições para o ataque final às trincheiras inflacionárias, chegava a hora de se eliminar o tóxico sistema de ajustes automáticos de preços baseado na inflação passada. Em um lampejo de genialidade, a equipe criou uma moeda que era a própria inflação – estável, pois, por definição – e deixou a sociedade operando com ela, ate se dar conta de que era uma muleta supérflua e dispensá-la sem traumas, surpresas ou prestidigitação.
Claro, nem tudo foi perfeito, na condução inicial do Real: o gasto público aumentou generosamente e a estabilidade do câmbio foi alçada a uma prioridade esdrúxula. Valendo-se da relação inversa entre câmbio e juros, a política monetária tornou-se caudatária da estabilidade cambial, mimetizando uma dolarização tupiniquim. Ao longo do tempo, felizmente, correções foram sendo implementadas ate enraizarmos na condução da política econômica o tripé da estabilidade de preços: equilíbrio fiscal, política monetária ativa, flutuação, à mercado, da taxa cambial, tudo respaldado por polpudas reservas internacionais e abertura comercial crescente. Haja vista que, com exceção da atual comandante do banco dos Brics , todos os presidentes, desde Itamar, se ativeram a estes princípios, com variações em torno do tema. Uma conquista memorável, no único país do mundo que se acomodara por décadas a um amancebamento devastador com a inflação.
Entretanto, erros do passado, causadores de sofrimentos e injustiças, deixam traumas na cultura de uma sociedade. No nosso caso, a guerra contra a inflação incutiu no nosso imaginário alguns fantasmas que continuam a nos assombrar e que devem ser exorcizados. Caricaturando-os:
A inflação brasileira, diferente das tradicionais, é latente, está viva, apenas adormecida: o preço da estabilidade é a eterna vigilância e pagaremos qualquer preço para nocautear este monstro;
O vilão da inflação é o gasto público e o déficit, seu subproduto letal. Gasto bom é gasto cortado, buscar o superávit fiscal é meta virtuosa, a qualquer tempo;
Deus seja louvado por ter criado a política monetária. Com um Banco Central independente, às favas tomar inflação, porque se pratica a liberalidade no gasto público: o BACEN estará sempre legitimado para colocar os juros onde for necessário para compensar a esbórnia fiscal, duela a quien duela.
Olho vivo no superávit comercial. Esta benção que estimula nossos exportadores, paga as importações inevitáveis e permite-nos acumular reservas tranquilizadoras.
Vamos concordar que o respeito aos três primeiros dogmas garante que a inflação jamais vicejaria neste país. Mas, como o oncologista que prescreve quimioterapia na menor dose possível, para não matar o doente junto com a doença, o economista tem a obrigação de restringir o ônus imposto pela política econômica ao mínimo indispensável. Neste sentido, guiar-se por chavões simplistas implica no afastamento do cabedal testado e acumulado pela Teoria Econômica. Já o quarto dogma nos assegura realmente uma respeitabilidade internacional desejável, mas ao custo do sacrifício de um crescimento maior e mais justo e, pasmem, com pressão inflacionária imperdoável.
Vamos analisar cada um deles, desapaixonadamente?
Inflação Latente – Como qualquer outra, nossa inflação sempre resultou da vã tentativa de se comprar mais do que se produziu. Sua peculiaridade era o sistema de indexação, que introjetava no futuro, automática e impositivamente, a inflação do passado, a chamada memória inflacionária. Consequentemente, por mais perfeito que fosse um plano de estabilização, ele era conspurcado pelos desalinhamentos do passado. Mas 30 anos após o Plano Real, a memória inflacionária virou amnésia. É verdade que o reajuste de salário mínimo com ganho real é um sobrevivente daquele sistema, mas tolerável como instrumento reparador de uma concentração de renda induzida pela inflação do passado. E que, desde que o ganho real garantido seja igual ou menor do que o crescimento da produtividade, é politica neutra em relação à inflação.
O ponto central aqui é aceitar que a nossa inflação hoje é semelhante à do mundo todo. Como tal, deve ser enfrentada, sem temores de que seja mais robusta do que as demais. Portanto, nada de contemplação, tergiversação ou covardia ao enfrentá-la; mas, obedecendo ao mesmo ritual seguido nas demais economias.
Déficit Fiscal – Separando o joio do trigo: a qualidade e o tamanho do gasto público no Brasil são das mais graves distorções econômicas que temos? Vinculações, emendas parlamentares, inércia orçamentária, enfim, aberrações com que convivemos há décadas e cujo debate sequer foi iniciado. Felizmente, o lado tributário tem feito avanços notáveis. Não cabe, portanto, questionar a prioridade de se enxugar a máquina estatal, diminuir e simplificar a carga sobre empresas e tributar as pessoas físicas de forma mais eficiente e justa.
Daí a se concluir que o déficit fiscal é um mal em si, vai uma longa distância. Realmente, o déficit fiscal gera como efeito imediato o crescimento da Demanda Agregada e, como efeito duradouro, o aumento do endividamento.
Quando a economia se encontra próxima do pleno emprego, agregar demanda através de gastos públicos maiores do que a arrecadação põe lenha no processo inflacionário. Adicionalmente, se há déficit, há a necessidade de financiá-lo, elevando-se a dívida pública. E, se esta é percebida pelo mercado como perigosamente elevada, a continuidade do seu financiamento pode ser colocada em dúvida e, no mínimo, os juros subirão. Nestas duas circunstâncias, o déficit público é um mal a ser combatido, pois o governo, em vez de ser protagonista do bem estar social, torna-se seu algoz.
Entretanto, se a economia estiver operando com ociosidade, o déficit público será benéfico, por exercer um papel contra-cíclico oportuno e compensatório de uma insuficiência da demanda privada. Similarmente, um aumento da dívida pública em cenário de credibilidade crescente da política econômica, não induz por si só a degradação do seu financiamento. Nestes casos, o déficit não só é aceitável, mas desejável.
Um exemplo da condução virtuosa do déficit primário foi dado por Paulo Guedes que, em 2021, em plena pandemia, ousou minorar o seu efeito recessivo, comandando um déficit colossal. No ano seguinte, a demanda privada se recompondo, Guedes virou a mão e registrou o maior superávit dos últimos tempos.
Conclusão: déficit é o déficit e sua circunstância, nada de louvável ou abominável na sua ocorrência.
Politica Monetária – descartemos, de início, a proposta dos desenvolvimentistas, que se espojam na prática de juros reais negativos para fomentar a atividade econômica. Delfim Neto costuma lembrar que os juros funcionam como a corda amarrada ao pescoço da vaca: para trazê-la para perto, a corda é eficiente, mas para afastá-la, é um fracasso. De fato, para desaquecer a economia, os juros são imbatíveis; para reativá-la, uma lástima. Nosso mestre Milton Friedman ensinava que os juros deveriam ser vistos como o ar condicionado de uma fábrica: não suba acima de 24 graus para estimular a produção, nem congele os trabalhadores para desestimulá-la; mantenha-a estável e interfira nas demais variáveis do sistema. Exemplar tem sido o desempenho do Banco Central americano que, apesar de conviver com um Executivo gastador mesmo em presença de uma demanda privada aquecida, promoveu a elevação dos juros de forma circunspecta, cuidadosa, valendo-se de uma retórica pedagógica de direcionamento das expectativas e conseguindo reverter uma pressão inflacionaria assustadora, sem provocar uma recessão que a todos preocupava. Já no Brasil, a Autoridade Monetária é devota do saber popular de que juros altos e caldo de galinha não fazem mal a ninguém e peca por excesso, apesar da clara lição que seus pares americanos estão dando.
Saldo Comercial – desconheço outro país onde a mídia não especializada acompanha o desempenho mensal da balança comercial com o foco que vemos no Brasil. Trauma remanescente dos defaults, calote, totós, beiço que demos no passado, com dolorosas consequências, o leigo exulta quando as exportações disparam e entram em depressão quando as importações suplantam-nas. Exportar é a solução, foi um slogan consagrado no passado. Na realidade, em uma economia com normalidade nas suas contas externas, Importar é a solução. Importar assemelha-se a desfrutar de uma sofisticada refeição, em restaurante consagrado. Exportar é pagar a conta do regabofe. Consequentemente, quanto maior a abertura comercial, melhor. O sucesso das exportações comprova que somos competitivos em vários produtos, gerando divisas com as quais compraremos produtos melhores e mais baratos, de um mundo que consegue produzi-los melhor do que nós. Mas, mesmo sendo imbatíveis no mercado internacional em diversos produtos, lamentavelmente, mantemos barreiras à importação e elevamos o preço dos importados. Exemplo notável, pagamos quase o dobro do que se pratica no mundo por automóveis populares importados, em nome da defesa da infante indústria automobilística local, esta senhora de mais de 70 anos de idade.
Com mais de trezentos bilhões de dólares de reservas, poderíamos zelar mais pelo bem-estar da maioria, extinguindo o protecionismo de uma minoria.
*PhD em economia
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