Os homens da Inconfidência foram, em suma, a nossa primeira grande geração política autenticamente brasileira, pelas diretrizes de seu espírito, pelas raízes e relevância de sua obra e de seu exemplo, pelo alcance de seu pensamento.
“Discurso do governador Juscelino Kubitschek sobre o Dia de Tiradentes, Ouro Preto – MG – 21 de abril de 1952”.
Aqui estamos na mais intensa emoção cívica, celebrando uma data gloriosa dentro do próprio ambiente em que se deram os acontecimentos que assinala. Aqui estamos, contemplando o cenário majestoso de Vila Rica, voltados para a evocação dos seus heroicos pioneiros e desbravadores e descobrindo no mínimo detalhe de sua paisagem alcantilada e de sua magnífica arquitetura um pouco da vida que se extinguiu e permanece e se renova ao influxo das aspirações mais altas e dos nobres impulsos que distinguem o povo desta cidade, guardião intimorato, através dos tempos, das genuínas tradições de Minas Gerais. Aqui estamos, na praça que nos recorda a figura peregrina de um cidadão humilde e simples que tinha como o seu melhor brasão a coragem e a perseverança, a decisão e o desdém pelo perigo. Este, meus senhores, é um momento de unção e de júbilo, de vibração incoercível, mas também de recolhimento e veneração. Arde aqui o fogo sagrado da Pátria e tudo nos fala de vultos que já adquiriram o halo de legenda com que a história ilumina e emoldura a memória dos homens que transfiguraram o efêmero da vida imprimindo-lhe o selo de perene e do inconsumível. Momento de unção e júbilo, porque nos cerca a lembrança daqueles verões que, fraternizados pelo sonho e pela esperança, auscultaram os mais íntimos reclamos de seu povo e demarcaram, com o seu ideal, novos itinerários à trajetória luminosa da Nação. Ideal que triunfaria apesar de tudo, ideal dos Inconfidentes, de que são a melhor imagem estas montanhas e horizontes largos, ideal projetado para cima, dilatado até atingir as dimensões mesmas do infinito.
Aquelas três dezenas de poetas, militares, sacerdotes, homens do povo não compunham uma facção utópica a laborar em terreno inconsequente de ideias. Representavam, antes, o povo: era a elite de uma Nação que surgia e em cuja mente madrugou o pensamento político mais generoso do tempo. Eram poetas em cuja lírica a sensibilidade nacional venceu o convencionalismo das formas: eram militares em cujos corações pulsavam da mesma forma, as aspirações do povo e os grandes problemas da coletividade; eram sacerdotes que, em seu apostolado, tinham bem vivos os interesses da Nação de que provinham e a que serviam: eram proprietários e homens do povo que sabiam sentir em si as esperanças da pátria nova. Os homens da Inconfidência foram, em suma, a nossa primeira grande geração política autenticamente brasileira, pelas diretrizes de seu espírito, pelas raízes e relevância de sua obra e de seu exemplo, pelo alcance de seu pensamento.
Quis o Governo de Minas Gerais transportar-se para Ouro Preto, neste dia, a fim de render homenagem, em uníssono com todos os mineiros, à memória de Tiradentes e seus companheiros de conjuração. Nosso propósito, convidando para acompanhar-nos nesta romaria cívica eminente figuras da República, ilustres parlamentares e jurisconsultos, nobres representantes das forças armadas, das classes produtoras, intelectuais e homens de pensamento, nosso propósito outro não foi senão possibilitar, dentro de uma tradição muito cara aos mineiros, a comemoração da data da Inconfidência na cidade em que se desenrolou o movimento emancipacionista e com a presença de personalidades que, atuando em diferentes setores e ao peso de diferentes responsabilidades, se devotam igualmente a construir a prosperidade e a grandeza do Brasil e tem como único roteiro e objetivo o bem comum, que enobrece e concretiza a felicidade da Pátria.
Para maior relevo e expressão desta festa, ocorreu-nos pedir a contribuição do notável homem de letras, tribuno e historiador, que é o professor Pedro Calmon. A presença do Magnífico Reitor da Universidade do Brasil, como das demais eminentes autoridades, é, para os mineiros, sobremodo desvanecedora. A sua palavra fulgurante se ergue sempre com a eloquência que entusiasma e deslumbra e ninguém melhor que esse espírito de alta estirpe para dizer-nos, numa interpretação perfeita, das vibrações patrióticas que ora estremecem a alma do Brasil.
Queremos ressaltar ainda que, ao trazermos a Ouro Preto o professor Pedro Calmon, não perdemos de vista a distinção que a presença do Magnífico Reitor representaria para a Escola de Minas, um dos tradicionais institutos da Universidade do Brasil, cuja obra em prol da causa do ensino tem sido das mais completas e perfeitas. Está claro que igualmente se sentem distinguidos os demais educandários do Ouro Preto e os estudantes que, como os seus colegas do passado, agitam a cidade centenário com a calor e a efusão de sua mocidade.
Em Ouro Preto, atalaia vigilante do nosso civismo, se encontra ao vivo os traços distintivos do povo brasileiro. Há em sua sombra acolhedora, em sua beleza grave e meditativa, na sua riqueza e esplendor de sua arte, na sugestão de suas lendas, dos seus templos e edifícios, uma síntese das tendências e inclinações de nossa gente: a vontade heroica, discreta e silenciosa. O gosto das coisas simples; a serenidade, a fé firme e segura, a intensa religiosidade. Ouro Preto foi e é manancial de crença e espiritualidade, detentora e irradiadora da mais pura inspiração cristã. Era esse o destino que lhe estava reservado desde a origem, como acentuou, em página magistral da “História Antiga das Minas Gerais”, o historiador Diogo de Vasconcelos: “No dia seguinte – diz ele – alvorecendo sexta feira 24 de junho de 1698, os bandeirantes ergueram-se e deram mais alguns passos: todo o panorama estupendo do Tripuí, iluminado então pela aurora, rasgou-se dali aos olhos ávidos: e o Itacolomi, soberano da cordilheira, estampou-se de púrpura e ouro, de anil e rosas. Tomado o santo do dia, São João Batista foi o patrono da nova terra, Vox clamantis in deserto, e essa voz, ressoando nos ecos da solidão, despertou a natureza ouvindo a saudação do anjo: Ave Maria! Foi essa a madrugada em que realmente se fixou a era cristã das Minas Gerais. Estava descoberto o Ouro Preto”.
Se Ouro Preto, como as nossas outras cidades coloniais, é repositório de arte, fé e tradição, a exemplo das demais exige que a cuidemos, que a salvemos do inevitável desgaste, opondo-nos, com os recursos a nosso alcance, ao seu deperecimento. O Governo de Minas, julgando dever indeclinável assistir o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional na obra louvável que desenvolve em território do Estado pela preservação das relíquias e obras de arte, pretende encaminhar mensagem à Assembleia Legislativa propondo que se conceda àquele órgão uma subvenção anual destinada à conservação das cidades históricas de Minas entre as quais naturalmente, em plano destacado, figura Ouro Preto. Teve ainda como justo e conveniente solicitar ao excelentíssimo Senhor Presidente da República, dentro das diretrizes estabelecidas pelo seu patriótico governo, a inclusão no orçamento da República para 1953 de uma dotação destinada também a incrementar os trabalhos do Serviço Patrimônio em Minas Gerais. É nosso pensamento que deve ser ampliada ao máximo a assistência aos tesouros e cabedais artísticos, tão numerosos em Ouro Preto, cidade que se projeta como realização poderosa de um povo que, afeito a árduos misteres, não descurou jamais das iniciativas e empreendimentos ligados ao espírito e à cultura.
Se Ouro Preto é repositório de arte, fé e tradição, mas se distingue, pela vocação da liberdade que é esplêndido atributo de seus filhos. Foi essa vocação, harmoniosa e fecunda, que arrebatou os Inconfidentes e, clara e luminosa, fez do humilde alferes o protomártir, conferindo-lhe, para a eternidade, o valor de um símbolo. O símbolo de que o espírito não conhece algemas e que o destino do homem não pode ser restringido ou limitado, porque aspira à plenitude de sua origem divina. O símbolo capaz de nos inculcar a certeza de que somente o ideal permanecer e apenas ele pode imprimir à ação humana um sentido maravilhoso de perenidade.
Cento e sessenta anos decorreram desde o dia em que a morte do herói encerrou o mais belo e sugestivo capítulo da História do Brasil. Sobre as coisas perecíveis o tempo passa destruindo, aparando e aniquilando. Sobre as verdades eternas, porém, o tempo passa reanimando, fazendo florir em cada ruína uma pétala e uma lembrança e dando à formas imprecisas consistência duradoura e eterna. Já ultrapassado em século e meio Tiradentes e os Inconfidentes surgem mais atuais, mais vivos e mais próximos. A névoa dos anos se vai dissipando e em torno desse monumento, onde outrora, em poste de ignomínia, esteve exposta sua cabeça, se agrupam e reúnem os que sonham com a Pátria mais forte e engrandecida. As calçadas, santificadas pelo ruído evocador do passo dos conspiradores que, em noite do passado, acordavam o silêncio da urbe adormecida para nos senhoriais solares conspirarem a velha praça em cujo centro o Poste da Ignomínia se transformou em suas faces severas e mudas na maior e mais humana lição contida nas páginas da História Nacional.
Filho de uma cidade que também ostenta o brasão de haver lutado pelas causas sagradas de nossa terra, sinto-me hoje feliz ao transportar, por algumas horas, para a antiga e nobre Capital das Minas Gerais, o Governo com todos os seus componentes, para numa homenagem comovida e filial, render à grande, poética e encantadora célula do civismo brasileiro, que é Ouro Preto, o culto sagrado do povo mineiro, que nesta hora, pela voz de seu Governo, vem dizer aos seus filhos que, enquanto os homens tiverem memória, esta cidade e esta data viverão perenes e palpitantes na lembrança da Pátria agradecida.
*Texto extraído do livro “JK: Doutor em Desenvolvimento – Um Mineiro à Frente de seu Tempo”, de autoria de Carlos Alberto Teixeira de Oliveira e publicado por MercadoComum.
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